Capítulo Nono

O CÓDIGO DO PODER

 

Um homem pode ser uma estrela de primeira grandeza em qualidades, força de vontade e perseverança, mas tão equilibrado que gira com o sistema a que pertence, sem nenhuma fricção ou perda de energia. Um outro pode ter as mesmas grandes qualidades, ou ainda mais apuradas, mas o eixo não lhe passa precisamente pelo centro e ele desperdiça metade da sua força em movimentos excêntricos que o enfraquecem e perturbam o ambiente.
Hermann Hesse
THE GLASS BEAD GAME

 

Ele tão queria ter Fulano como rival vitorioso, mas também tão queria tê-lo como inimigo.
Douglas Hurd
TRUTH GAME

 

 

Não há normas para se aprender a conquistar o poder: a coisa tem que vir de dentro de nós. Mas, seguindo-se umas tantas normas, é possível apurar a percepção. Todos temos um determinado potencial de poder, mas poucos fazem uso dele, ou mesmo sabem que o têm.

Nas culturas mais "primitivas", os jovens são iniciados nos ritos do poder, às vezes de modo muito complicado. As normas são absolutas e claramente definidas, e devem ser seguidas com exatidão, mas destinam-se a desenvolver no iniciado uma maior capacidade de percepção de si mesmo; a simples realização do ritual não basta. Se, em certas tribos de índios americanos, os jovens se enterram até o pescoço, em buracos, em elevações solitárias do deserto, é para aprenderem a ter paciência, concentração e capacidade de ficar sem falar quando necessário, por mais desconfortável que o exercício seja. Não há nada de misterioso no processo - um caçador que seja nervoso, ou que se coce quando mordido pelas moscas, não tem grandes probabilidades de apanhar muita caça. A sobrevivência reside na capacidade de controlar o nosso corpo e a nossa mente.

O nosso mundo não é tão diferente, barulhento e complexo como parece, mas nós somos menos afortunados do que os índios. Somos educados, à custa de um considerável esforço, mas nenhum mestre sábio nos prepara para o mundo que teremos que enfrentar quando adultos. Se temos sorte, aprendemos um ofício, mas para a maioria, o preço da sobrevivência é a rendição. Há um lugar para quase todos no nosso mundo, mas a maior parte das vezes em condições determinadas pelos outros, não por nós. Alguns aprendem a ser bem sucedidos e podem se tornar ricos e famosos; poucos aprendem a usar o mundo, em vez de serem usados por ele.

Os que crescem pelas ruas aprendem a confiar em si mesmos, mas pagam um alto preço pelo aprendizado - a rua ensina lições muito duras. Para a maioria, a idéia de que somos responsáveis por nossas vidas chega tarde, se é que chega. Nosso sistema de educação nos ensina a colocar nossa fé em alguma outra coisa - na corporação, no casamento, no comércio, numa profissão, numa religião, na política, em alguma coisa, quase poderíamos dizer, seja no que for que nos ofereça um conjunto de normas a que possamos obedecer e nos recompense pela obediência a elas. Parece muito mais seguro ser um animal doméstico do que um animal selvagem.

Quando chegamos à meia idade, é-nos difícil aceitar o conceito de que temos uma existência à parte daquilo que fazemos, das pessoas com quem nos casamos, dos filhos, dos colegas, dos nossos sócios. Fomos mergulhados numa comunidade e gastamos a maior parte de nossas vidas satisfazendo exigências dela.

Dadas as circunstancia, não chega a ser surpreendente que muitos terapeutas se especializem em ensinar aos sofisticados e triunfadores homens modernos o que um índio já sabe aos dezesseis anos. Um analista construiu um complicado e engenhoso sistema de trens elétricos, com painéis de comando nos extremos opostos da sala. Os casais "em dificuldades" recebem dois trens e devem conduzi-los em direções opostas. É claro que os trens se esmagarão um de encontro ao outro, se chocarem de frente; mas é preciso habilidade e cooperação para os fazer entrar nos desvios, de modo que se possam mover livremente, sem colisões. Descessário dizer que as pessoas sem noção de poder ficam com o seu trem permanentemente no desvio, enquanto o do companheiro se move rapidamente ao longo dos trilhos. Quem tem um sentido super-desenvolvido do poder tenta e força o trem do companheiro para fora do caminho e até convida a colisões, de um modo claramente auto-destrutivo. Os que entendem o poder conseguem encontrar um meio que permite que ambos os trens se movam livremente, a velocidades iguais. Um índio teria provavelmente aprendido que se pode cooperar, sem sacrifício da identidade de cada um e sem pagar cinqüenta dólares por hora.

Um analista existencial muito conhecido força os seus pacientes a aceitarem a responsabilidade pelas suas ações, usando um grande quadro negro em que esboça as conseqüências previsíveis de um dado ato. Sua especialidade são os homens de negócios de meia idade, que acham que suas carreiras se atolaram no lodo. "Essa não é a razão pela qual eles vêm me procurar", diz ele: "Eles estão aqui, geralmente, por causa de algum problema sexual, a maior parte das vezes impotência ou ejaculação precoce; mas, quando são levados a falar de si mesmos, não é sexo que está na sua cabeça. Do que eles sofrem é de um sentimento de inércia, de desamparo, de falta de poder. Seus empregos e seus gabinetes são muito mais reais para eles do que qualquer das mulheres de suas vidas, e é muito mais provável que falem apaixonadamente acerca de seu trabalho do que acerca de suas esposas e namoradas. Na maioria das vezes, seus problemas sexuais são secundários. Eles simplesmente perderam todo o senso de identidade. Olham para as suas vidas como completas, acabadas, dirigidas por outras pessoas. Às vezes, são homens fortes, que tomam decisões, mas o seu ego está a serviço de outrem e, se o querem para si mesmos, não está lá".

O médico, um homem delgado como arame, mas rijo e enérgico, questiona cada coisa que cada um deles faz ou diz, desnuda-o das transigências e evasões de toda uma vida, torna-o consciente de que ele existe. É a favor da cadeira de encosto duro, não da poltrona, e às vezes permite aos pacientes que se sentem no lugar dele à mesa, enquanto ele ocupa a cadeira de encosto duro. "Deixemo-los ocupar a posição do poder", diz ele: "É preciso que eles aprendam que eu não sou um feiticeiro nem um mágico disposto a resolver todos os seus problemas. Quando principiam a discutir comigo, quando já não confiam mais em mim de uma vez, estão no caminho da cura". O quadro está no extremo da pequena sala sem janelas, brilhantemente iluminada por focos de cima. Se um paciente se queixa de ter sido preterido em alguma promoção que desejava (essa é uma fonte muito comum de desespero), o bom médico vai ao quadro negro e demonstra brutalmente as alternativas existes e respectivas conseqüências. "A - você fica onde està e não faz coisa nenhuma; B - você principia a procurar outro emprego; C - você fica onde está e tenta recuperar o que perdeu." Em seguida, faz rapidamente uma lista das conseqüências de cada uma das decisões, provando os fatos: Você poderia agüentar um período de desemprego, enquanto estivesse procurando outro emprego? De quanto dinheiro você realmente precisa? Você deseja mesmo ser promovido? Você já explorou bem o potencial do emprego que tem? É esta uma boa oportunidade para você fazer outra coisa, mudando toda a sua vida? O paciente é inquirido, forçado a perguntar a ele mesmo o que é que quer fazer, a aceitar o fato de que é responsável pelas conseqüências da sua liberdade. "A vida", diz o doutor, "apresenta alternativas e exige coragem. Temos que aprender a não nos queixarmos, a não r a culpa aos outros, a não perder tempo, a lutar contra coisas que são inevitáveis. Nada de autopiedade! Habilidade, coragem e poder!"

Evidentemente, o problema com esta espécie de terapêutica em forma de conselho é que nenhum analista pode compartilhar das nossas experiências: tem que aceitar a nossa palavra quanto à natureza do nosso trabalho e à estrutura de nossas vidas. Na tribo índia, mestre e aluno compartilham da mesma hereditariedade. A sabedoria dos caçadores passou para os jovens; as perguntas dos jovens foram feitas em cada geração. É mais fácil ser sábio quando a vida é simples e uniforme, mas muito difícil quando o nosso aluno tem que nos explicar como funciona o negócio internacional de títulos, antes de explicar por que se sente infeliz em sua vida. No entanto, as normas do poder não são muito diferentes de uma cultura para a seguinte, quando as despimos da sua mitologia. Tenho um bom amigo que é estudioso de culturas "primitivas" (que, evidentemente, não são primitivas coisa nenhuma) e passou a maior parte de sua vida vivendo com tribos mal conhecidas, à volta do mundo. É um homem alto, delgado, ascético, nova-iorquino por nascimento e educação, mas sempre parecendo que estaria mais à vontade numa aldeia esquimó, ou no centro de uma dança índia de fantasmas. Tem a aparência inocente de um acadêmico, reforçada ainda pelo saco verde em que leva os livros e pelos óculos com armação de arame; facilmente se chega a pensar que existe nele algo de fora do mundo. Os habitantes cínicos da cidade, encurralados nas defesas urbanas, não gostam dele quando aparece por aqui; e passava-se o mesmo comigo, até que, uma tarde, notei o modo cauteloso como ele descia a Amsterdam Avenue, não com medo, mas caminhando pela beira do passeio, com os olhos farejando perigo, notando cada movimento à sua volta. Caminhava como um caçador, rapidamente, cautelosamente, não deixando que ninguém se aproximasse dele, e fazia-o sem parecer pensar nisso ou fazer qualquer esforço. Nas ruas da violência, ele parecia - e ele era - um homem de poder.

Evidentemente, ele o é. Ele entende o poder; quando faz uma conferência (raro e comemorado evento), entra na sala com as pessoas que vão assistir e senta-se no meio delas, até que todos os lugares estejam ocupados e todo mundo principie a perguntar onde é que ele está. Então, quando todos estão olhando expectativamente para o estrado vazio, como se desconfiassem de que ele estivesse escondido atrás do podium, ou de que não virá, ele se levanta do seu lugar e caminha para o estrado. Os poderosos têm a capacidade de se dramatizarem, a si mesmos e aos seus atos, de modo que os mais insignificantes eventos adquirem um sentido. É um talento natural, mas que pode ser desenvolvido. Esse meu amigo gosta de chegar sem avisar, passando pelas recepcionistas e secretárias, parecendo ter chegado por mágica; e, quando quer ir embora, espera que eu saia do gabinete para atender um telefonema ou ir ao banheiro, e, quando volto, já desapareceu. Nada de despedidas; simplesmente foi embora, e é difícil mesmo acreditar que tenha estado ali. Ele se colocou fora do controle das outras pessoas, sem desistir de uma carreira vitoriosa e muito ocupada; como resultado, está tão à vontade em Nova York como nas selvas da Nova Guiné.

O meu amigo e eu estamos sentados no zoológico do Central Park, na esplanada de um café, numa destas tardes de verão em que o parque está tão cheio de gente que os animais parecem mais humanos do que nós. À nossa direita, ficam as torres de Nova York comercial, um rochedo alto, brutal, de grandes edifícios, erguendo-se por entre as camadas da cerração como a pavorosa torre de Barad-Dúr no Lord of the Rings, de Tolkien. Eu posso entender como alguém pode se tomar um homem poderoso, nas sociedades e culturas mais simples; pode ter havido uma longa e dura iniciação, mas as distrações são menores. O simples tamanho da cidade distorce o ego. Ou somos reduzidos à impotência de uma rotina diária sem sentido - dormir, comer, trabalhar, tomada ainda mais dolorosa por sabermos que não temos poder sobre as nossas vidas; ou, pior ainda: nos destruímos tentando tornarmo-nos maiores, mais famosos, mais poderosos do que a própria cidade. Pode alguém ter poder aqui - quero saber - numa vida cheia de concessões, decisões, aborrecimentos, pressões, num lugar em que até o prefeito raramente parece capaz de controlar seja o que for? Eu posso entender o significado de poder no deserto; a importância dos ritos do poder; o súbito esclarecimento da consciência, que nos atinge quando estamos sós com a Natureza - tudo isso faz sentido. Mas, e num gabinete do trigésimo oitavo andar de um grande edifício em que trabalham milhares de pessoas? Como é que se busca o poder ali?

O meu amigo sorri. Há normas, e elas são as mesmas para todos - esta esplanada não é assim tão diferente de uma clareira da selva. O código do poder não muda só porque estamos no metrô, no Central Park ou num gabinete sem janelas em que tudo é de plástico.

"Esta primeira norma", diz ele, "é simples. Funciona impecavelmente! Pratique cada ação como se isso fosse a única coisa que importa no mundo."

Eu posso perfeitamente entender isso. É um velho princípio de Zen - põe toda a tua alma e todo o teu ser e toda a tua vida no ato que estás praticando. Na arte zeniana de atirar setas, todo o teu ser joga a seta da vontade no centro do alvo, com uma força invisível. Não se trata de uma questão de vencer, ou mesmo de cautela, trata-se apenas de tornar importantes para nós mesmos os atos que praticamos diariamente. Por menos importante que seja a tarefa, temos que ensinar a nós mesmos que ela importa, Se vamos intervir numa reunião, devemos fazê-lo no momento oportuno, preparar-nos para o que desejamos dizer, falar no momento crucial em que a nossa intervenção será escutada e considerada, estar seguros de que nos darão atenção. A não ser assim, é melhor ficar calado. É preferível não fazer coisa nenhuma, a fazer uma coisa mal feita.

"Segunda norma: nunca reveles aos outros tudo a teu respeito; guarda alguma coisa de reserva, para que eles nunca tenham a certeza de que realmente te conhecem."

Também entendo isso. Não quer dizer que alguém em busca de poder deva guardar segredo, segredo não é truque, de modo algum. É mais uma questão de a gente se manter levemente misteriosa, como se sempre fosse possível fazermos algo de inesperado e de surpreendente. Muitas pessoas são tão previsíveis e revelam tanto a seu respeito que aquelas que não o fazem adquirem automaticamente uma espécie de poder. Por essa razão, é importante largar o hábito auto-indulgente de falarmos de nós próprios. O poderoso prefere escutar e, quando fala a seu respeito, é para mudar o assunto da conversa. Os bons jogadores percebem sempre quando alguém está para lhes pedir algo que não querem fazer, e então, com toda a naturalidade, mas também com toda a firmeza, mudam a conversa para um nível pessoal. Um dos melhores jogadores que conheço pode falar a seu respeito durante horas, ao mais ligeiro sinal de oposição ou de pedido que está para lhe ser feito. Mesmo assim, não revela coisa nenhuma. Uma vez dá a impressão de ter dois filhos; outra vez, três; vez por outra, nenhum; e, em várias ocasiões, tem dado a entender que é graduado de Yale, de Harvard, de Stanford e de Ol'Miss. Existe certa confusão sobre se ele é ou não judeu ou protestante, pois ele já afirmou ser as duas coisas e ainda se benze quando passa em frente da catedral de St. Patrick. Ninguém realmente sabe a verdade a respeito dele, e por isso o respeitam. Quando chegamos a saber tudo a respeito de uma pessoa, deixando-a seca como um limão espremido, ela não serve para mais nada, não tem mais interesse para nós, podemos jogá-la fora.

"Terceira norma: aprende a usar o tempo e pensa nele como um amigo, não como um inimigo. Não o desperdices indo atrás de coisas que não desejas."

Usar o tempo! É claro, mas como raramente o fazemos! O tempo é que nos usa, nós somos meramente seus servos. Lutamos contra ele, como se ele fosse o inimigo, tentando fazer caber duas horas de trabalho dentro de vinte e cinco minutos, se somos ambiciosos, ou esticar o trabalho de vinte e cinco minutos ao longo de duas horas, se não somos. Os poderosos dedicam ao que estão fazendo exatamente o tempo que querem, ou de que necessitam. Não tentam responder dois telefones ao mesmo tempo; nem principiam uma reunião e depois a interrompem sem chegar a uma conclusão, porque "o tempo se esgotou"; nem interrompem uma conversa para principiar outra. Eles não se importam de estar atrasados, de perder chamados telefônicos, de adiar o trabalho de hoje para amanhã, caso tenham que fazê-lo. Os acontecimentos não os controlam, eles é que controlam os acontecimentos.

"Quarta norma: aprende a aceitar os teus erros. Não sejas perfecionista a respeito de tudo."

Uma boa verdade. Metade das pessoas que conhecemos ficaram sem poder por causa do seu desejo de perfeição, como se um erro pudesse destruí-las. Os poderosos aceitam a necessidade de correr riscos e de não terem razão. Não perdem tempo justificando os erros nem tentando transformá-los em decisões corretas. Nada torna a gente mais boba ou impotente do que a incapacidade de admitir um erro.

"Última norma: não faças ondas; move-te suavemente, sem complicar as coisas."

Também isso faz sentido, mesmo no nosso mundo, Metade da arte do poder consiste em dar um jeito para que as coisas aconteçam do modo que a gente quer: exatamente como um bom caçador, que se mantém num lugar e faz com que a caça venha a ele, em vez de a perseguir. A arte do caçador não está deslocada no nosso mundo; apenas deve ser diferentemente aplicada.

Meu amigo sorri novamente. "Que mais posso eu dizer?", pergunta, voltando-se para o edifício ao sul do parque. "É o teu mundo. Tu o esburacaste - telefones, máquinas de telex, cartões de crédito, e tudo mais. Por mim, eu não me importaria de viver nele todo o tempo. Não estou interessado em negociar contratos, ou comprar um carro novo, ou dirigir uma empresa - não temos os mesmos desejos e as mesmas ambições. Mas eu poderia viver aqui tão facilmente como vivo em qualquer outro lugar. Tu apenas precisas de poder. E, desde que tu vives nele, tens que examinar este teu mundo fria e claramente, como se a tua vida dependesse dele. Porque realmente depende.

Vivemos numa sociedade de massa, como unidades de um rebanho, e a sabedoria convencional nos ensina que a segurança está em seguir o rebanho.

Mas o meu amigo tem razão: o homem não é um animal de rebanho; sua segurança está na sua habilidade como caçador, na sua capacidade de agir e de existir sozinho. Entender o rebanho faz parte da habilidade do caçador, esconder-se no rebanho é uma decepção útil, mas ele não pode fazer parte do rebanho sem sacrificar a essência de sua natureza.

Quanto mais mecânico e complicado for o nosso mundo, mais precisaremos da simplicidade do poder, para nos guiar e proteger. É o único dom que nos permite continuar sendo humanos num mundo desumano - porque o amor do poder é o amor por nós mesmos.(1)