BIOGRAFIA
DE |
Fonte: Allan Kardec: Obras
Completas
Opus Editora, S. Paulo, 1991
Conferência de Henri Sausse,
quando da solenidade com que os espíritas
de Lion celebraram, a 31 de março de 1896, o
27º aniversário da desencarnação de Allan Kardec.
Senhoras e Senhores:
Várias pessoas que se interessam pelo Espiritismo demonstram inúmeras vezes o pesar de só conhecerem imperfeitamente a biografia de Allan Kardec, e de não saberem onde achar, a respeito daquele ao qual chamamos Mestre, as informações que desejariam obter. Assim, é com o fim de homenagear Allan Kardec e festejar a sua memória que nos encontramos hoje reunidos, e igual sentimento de veneração faz pulsar todos os corações. Por respeito àquele que fundou a Filosofia Espirita, permiti-me, na intenção de tentar corresponder a tão legítimo ensejo, que um pouco vos entretenha com esse mestre amado, cujos escritos são universalmente conhecidos e apreciados, e cuja vida íntima e trabalhosa existência são somente entrevistas.
Se foi fácil aos investigadores conscienciosos darem-se conta do alto valor e grande alcance da obra de Allan Kardec, lendo atentamente as suas produções, pouquíssimos conseguiram, por lhes faltarem até hoje os elementos necessários, adentrar a vida interior do homem e acompanhá-lo passo a passo no cumprimento de sua missão, tão grande, gloriosa e bem desempenhada.
Não apenas se conhece pouco da biografia de Allan Kardec, como também ela está por ser escrita. A inveja e o ciúme semearam a respeito dela os mais evidentes erros, calúnias imprudentes e grosserias.
Esforçar-me-ei, assim, por mostrar-vos, com luz mais real, o magno iniciador do qual nos orgulhamos de sermos discípulos.
É do conhecimento de todos vós, que nossa cidade pode orgulhar-se, com justo motivo, de ter visto nascer entre seus muros esse pensador tão ousado quão metódico, esse sábio filósofo, clarividente e profundo, esse operário sem esmorecimento, cujo labor fez tremer o edifício religioso do Velho Mundo e preparou os novos alicerces que seriam a base da evolução e renovação da nossa sociedade passadista, encaminhando-a para um ideal mais sadio, mais alevantado, para uma evolução moral e intelectual seguros.
Foi, de fato, em Lion que, no dia 3 de outubro de 1804, de tradicional família lionesa, os Rivail, nasceu aquele que mais tarde devia ilustrar o pseudônimo de Allan Kardec e alcançar para ele tantos lauréis para nossa funda simpatia, e nosso filial reconhecimento.
Aqui temos, sobre o assunto, um documento positivo e oficial:
Aos 12 do vindemiário do ano XIII, auto do nascimento de Denizard Hippolyte Léon Rivail, nascido ontem, às 7 horas da noite, filho de Jean Baptiste-Antoine Rivail, magistrado, juiz, e Jeanne Duhamel, sua esposa, moradores em Lion, rua Sala, 76.
Reconheceu-se como masculino o sexo da criança.
Testemunhas maiores: Syriaque-Frédéric Dittmar, diretor do estabelecimento das águas minerais da rua Sala, e Jean-François Targe, da mesma rua Sala, à requisição do médico Pierre Radamel, rua Saint-Dominique, 78.
Procedida a leitura, as testemunhas assinaram, como também o Maire da região do Sul.
O presidente do Tribunal,
(ass.) Mathiou
Recebeu, desde o berço, o futuro fundador do Espiritismo, um nome querido e acatado, e toda uma tradição de virtudes, honra e probidade; inúmeros de seus avós tinham-se distinguido na advocacia e na magistratura, pelo talento, saber e escrupulosa probidade. Era de se esperar que o jovem Rivail deveria aspirar, igualmente, os louros e glórias de sua estirpe. Tal, porém, não sucedeu, porque, desde a sua juventude, sentiu-se atraído para as Ciências e para a Filosofia.
Em Lion, Rivail Denizard fez seus primeiros estudos e inteirou a sua bagagem escolar, na cidade de Yverdun (Suíça), com o famoso mestre Pestallozzi, do qual em pouco se fez um dos mais sábios alunos, colaborador eficiente e dedicado. Dedicou-se, com toda calma, à propaganda do sistema educacional que tão preponderante influência exerceu sobre a reforma dos estudos na França e na Alemanha. Inúmeras vezes, quando de todas as partes Pestallozzi era solicitado pelos governos, para criar institutos tais como o de Yverdun, confiava a Denizard Rivail o trabalho de o substituir na direção de sua escola. O discípulo, tornado mestre, tinha, sobretudo, com os mais legítimos direitos, a capacidade necessária para sair-se airosamente da tarefa a ele confiada. Bacharelara-se em Letras e Ciências e doutorara-se em Medicina, após completar todos os estudos médicos e defender com brilhantismo sua tese. Insigne lingüista, conhecia perfeitamente e falava corretamente o alemão, o inglês, o italiano e o espanhol; tinha conhecimentos, também, do holandês e com facilidade podia expressar-se nesta língua.
Alto e belo moço era Denizard Rivail, de maneiras distintas, bem-humorado sempre entre os íntimos, bondoso, obsequioso. Como a conscrição o incluíra para o serviço militar, conseguiu sua isenção e, depois de dois anos, fundou em Paris, à rua Sèvres, 35, uma escola idêntica à de Yverdun. Fizera sociedade, para esse empreendimento, com um seu tio, irmão de sua mãe, o qual entrava como sócio capitalista.
Denizard Rivail encontrou, no mundo das Letras e do Ensino, que ele freqüentava, em Paris, a senhorita Amélie Boudet, professora com diploma de 1ª classe. Era de baixa estatura, porém de harmoniosas proporções, gentil e graciosa, rica por herança dos pais, e filha única, inteligente, vivaz, soube com seu sorriso e seus atributos fazer-se notada pelo Sr. Rivail, no qual adivinhou, debaixo da franca e comunicativa alegria do homem amável, o pensador sábio e profundo, que reunia grande dignidade à mais esmerada delicadeza.
O registro civil dá-nos a saber que:
Amélie Gabrielle Boudet, filha de Julien-Louis Boudet, proprietário e antigo tabelião, e de Julie Louise Seigneat de Lacombe, nasceu em Thias (Sena) aos 2 do Frimário do ano IV (23 de novembro de 1795).
Assim, a senhorita Amélie Boudet era nove anos mais velha do que o Sr. Rivail, porém aparentava ter dez anos menos que ele, quando, no dia 6 de fevereiro de 1832, foi firmado em Paris o contrato de casamento de Hippolyte-Léon-Denizard Rivail, diretor do Instituto Técnico à rua de Sèvres (Método de Pastallozzi), filho de Jean-Baptiste Antoine e senhora Jeanne Duhamel, residentes em Château-du-Loir, com Amélie-Gabrielle Boudet, filha de Julie e senhora Julie Seigneat de Lacombe, residentes em Paris, rua de Sèvres, 35.
O sócio do Sr. Rivail estava dominado pela paixão do jogo; levou à ruína o sobrinho, perdendo fortes quantias em Spa e em Aix-la-Chapelle. O Sr. Rivail pediu a liquidação do Instituto, feita a partilha da qual cada um recebeu 45.000 francos. Tal soma foi empregada pelo Sr. e Sr.ª Rivail na casa de um dos seus íntimos amigos, negociante, que realizou maus negócios e, com sua falência, nada deixou aos credores.
Em vez de desanimar com esse duplo revés, o Sr. e Sr.ª Rivail puseram-se corajosamente ao trabalho. Ele conseguiu e pôde tratar da contabilidade de três firmas, que lhe davam perto de 7.000 francos anualmente e, findo o seu dia, esse incansável trabalhador aproveitava a noite para escrever, ao serão, gramáticas, aritméticas, livros para estudos pedagógicos superiores; fazia a tradução de obras inglesas e alemãs e preparava todos os cursos de Levy-Alvarés, assistidos por alunos de ambos os sexos do bairro de Saint-Germain. Em sua residência, organizou também cursos gratuitos de química, física, astronomia e anatomia comparada, de 1835 a 1840, os quais eram muito freqüentados.
Membro de inúmeras sociedades de sábios, especialmente da Academia Real d'Arras, foi premiado, por concurso, em 1831, apresentando a sua magnífica memória: Qual o sistema de estudo mais em harmonia com as necessidades da época?.
Devem ser citadas, entre as suas inúmeras obras, em ordem cronológica:
Plano Apresentado para o Aperfeiçoamento da Instrução Pública (1828);
Em 1829, de acordo com o Método de Pestalozzi, e para o uso das mães de família e dos mestres, publicou o Curso Prático e Teórico de Aritmética;
Fez surgir, em 1831, a Gramática Francesa Clássica;
No ano de 1846, o Manual dos Exames para Obtenção dos Diplomas de Capacidade, Soluções Racionais de Questões e Problemas de Aritmética e Geometria;
Foi publicado, em 1848, o Catecismo Gramatical da Língua Francesa;
Por fim, em 1849, temos o Sr. Rivail professor no Liceu Polimático, lecionando nas cadeiras de Fisiologia, Astronomia, Química e Física.
Em uma obra bastante bem aceita, faz um resumo dos seus cursos e publica em seguida: Ditados Normais dos Exames na Municipalidade e na Sorbona; e Ditados Especiais sobre as Dificuldades Ortográficas.
Sendo essas várias obras adotadas pela Universidade de França e vendendo-se em larga escala, o Sr. Rivail pode alcançar, graças a elas e à assiduidade de seu trabalho, uma singela abastança. Deduzindo-se desta muito ligeira exposição, vemos que o Sr, Rivail estava magnificamente bem preparado para a espinhosa missão que ia desempenhar e tornar triunfante. Tinha um nome conhecido e acatado, seus trabalhos merecidamente louvados, muito antes de imortalizar o nome de Allan Kardec.
Seguindo em sua carreira pedagógica, poderia o Sr. Rivail levar uma existência feliz, honrada, calma, com sua fortuna reconstruída pela perseverança no trabalho e pelo brilhante êxito que lhe coroara os esforços; sua missão o chamava para uma tarefa mais dispendiosa, a uma obra mais excelsa e, como muitas vezes teremos ensejo de evidenciar, ele mostrou-se sempre à altura da gloriosa missão que lhe estava destinada. Suas tendências e aspirações tê-lo-iam encaminhado para o misticismo, porém, a educação, o reto juízo, a observação metódica, puseram-no ao abrigo, tanto dos entusiasmos sem motivo como das negações injustificadas.
Em 1854 foi que o Sr. Rivail, pela primeira vez, ouviu falar nas Mesas Girantes, de inicio do Sr. Fortier, magnetizador, com quem estabelecera relações, em virtude de seus estudos sobre o Magnetismo. Um dia, o Sr, Fortier lhe disse:
Eis o que é bem mais extraordinário:
Não apenas se faz girar uma mesa, como também se consegue fazê-la falar.
Pergunta-se, e ela responde.
Replicou o Sr. Rivail:
Quanto a isso, é outra coisa:
Eu crerei quando vir, e quando conseguirem provar-me que uma mesa dispõe de cérebro para pensar, nervos para sentir, e que se pode tornar sonâmbula;
Até que isso se dê, dê-me permissão de não enxergar nisso senão uma fábula para provocar o sono.
Este era, no início, o estado de espírito do Sr. Rivail, e assim o encontraremos inúmeras vezes, não negando nada por prevenção, mas exigindo provas e querendo ver e observar para acreditar; assim nos devemos mostrar em todas as ocasiões, no estudo tão atraente das manifestações do Além.
Até aqui, não vos falei senão do Sr. Rivail, professor competentíssimo, autor pedagógico famoso, Nesse período, contudo, de sua vida, de 1854 a 1856, um novo horizonte se descortina para esse pensador profundo, para esse percuciente observador. O nome Rivail, então, se obscurece, e cede lugar ao de Allan Kardec, que a fama levará a todas as parte do globo, repetido por todos os ecos e idolatrado pelos nossos corações.
Aqui temos como Allan Kardec nos revela as suas inquietações e hesitações, e também a sua primeira iniciação:
Encontrava-me, portanto, no ciclo de um fato ignoto, contrário, aparentemente, às Leis da Natureza e que minha razão não aceitava. Não tinha ainda visto nem observado nada; experiências procedidas em presença de pessoas honradas e dignas de fé firmavam-me na possibilidade de efeito meramente material; porém a idéia de uma mesa falante não cabia ainda no meu cérebro.
No ano seguinte --- no começo de 1855 --- encontrei o Sr. Carlotti, amigo havia vinte e cinco anos, que falou sobre esses fenômenos por mais de uma hora, com o entusiasmo que ele emprestava a todas as idéias novas. O Sr. Carlotti era corso de origem, natureza ardente e enérgica; distinguira sempre eu, nele, as qualidades formadoras de grande e bela alma, mas não confiava na sua exaltação. Foi ele o primeiro que me falou de intervenção dos Espíritos e narrou-me tanto as coisas extraordinárias que, em vez de me convencerem, fizeram crescer as minhas dúvidas.
--- Você virá a ser, um dia, dos nossos, disse ele.
--- Não digo que não, respondi-lhe; vê-lo-emos mais tarde.
Depois de algum tempo, pelo mês de maio de 1855, estive na casa da sonâmbula Sr.ª Roger, com o Sr. Fortier, seu magnetizador. Encontrei ali o Sr. Pátier e a Sr.ª Plannemaison que me falaram desses fenômenos no mesmo sentido que usara o Sr. Carlotti, porém com outro tom. O Sr. Pátier era funcionário público, idade avançada, belíssima instrução, de caráter grave, frio e ponderado; sua linguagem calma, destituída de qualquer entusiasmo, causou-me funda impressão e, quando me endereçou o convite de assistir às experiências que se faziam em casa da Sr.ª Plainemaison, à rua Grande-Bateliére, 18, aceitei solicitamente. A entrevista ficou assentada para uma terça-feira de maio, às 8 horas da noite.
Foi aí que, pela primeira vez, pude testemunhar o fenômeno das mesas girantes, que pulavam e corriam, e isso em tais condições que não era possível nenhuma dúvida.
Assisti, aí, também, a alguns ensaios muito imperfeitos de escrita mediúnica em uma ardósia, contando-se com o auxílio de uma cesta. Minhas idéias longe estavam de terem sofrido modificação, mas, no que sucedia, devia haver uma causa. Percebi, debaixo dessas aparentes futilidades e a espécie de brincadeira que se fazia com esses fenômenos, algo de sério e como que a revelação de uma nova lei, que a mim mesmo prometi investigar mais a fundo.
Surgiu-me e oportunidade e pude observar mais atentamente do que já pudera fazer. Em um dos serões da Sr.ª Plannemaison, travei conhecimento com a família Baudin, moradora, então, à rua Rochechouart. O Sr. Baudin convidou-me a assistir às sessões semanais feitas em sua residência, e às quais fui, a partir de então, muito assíduo.
Aí foi que iniciei os meus estudos sérios em Espiritismo, menos ainda devido a revelações do que pelas observações. Sujeitei essa nova Ciência, como o fazia a tudo, ao Método da Experimentação; jamais formulei teorias preconcebidas; observava acuradamente, comparava, tirava conseqüências; procurava, pelos efeitos, atingir as causas através da dedução pelo encadear lógico dos fatos, não aceitando como válida uma explicação, a não ser quando ela pudesse resolver as dificuldades da questão.
Procedi sempre assim em meus trabalhos anteriores, desde os meus quinze e dezesseis anos. Aprendi, desde o início, a gravidade da exploração que ia realizar. Percebi nesses fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão discutido do passado e do futuro, a solução que em toda minha vida andara procurando; em uma palavra, era uma total reviravolta nas idéias e nas crenças; necessário, pois, era agir circunspecta e não levianamente, ser positivista e não idealista, para não permitir que as paixões me arrastassem.
As primeiras conclusões de minhas observações foi constatar que os espíritos, sendo apenas as almas dos homens, não possuíam, nem a soberana sabedoria, nem a soberana ciência; seu saber era adstrito ao grau de sua evolução; e que a opinião que emitissem teria apenas o valor de uma opinião pessoal. Esta verdade, desde o início reconhecida, evitou-me o grave obstáculo de acreditar na sua infalibilidade e defendeu-me de formular teorias antecipadas baseadas na opinião de um só ou de alguns.
Somente o fato da comunicação com os Espíritos, fosse o que fosse que dissessem, provava existir um mundo invisível ambiente; constituía já um ponto capital, um vasto campo aberto às nossas explorações, a chave de uma grande quantidade de fenômenos desconhecidos. O outro ponto, não menos importante, era entrar no conhecimento deste mundo com seus costumes, se nos podemos exprimir assim.
Logo observei que cada Espírito, em virtude de sua posição pessoal e de seus conhecimentos, esclarecia-me uma fase desse mundo, da mesma maneira como se pode conhecer a situação de um país, interrogando os habitantes em todas as suas classes e condições, cada um deles podendo nos fazer conhecido algum aspecto e nenhum conseguindo, por si só, ensinar-nos tudo. Aquele que observa cumpre delinear o conjunto auxiliado por documentos recolhidos de diversos lados, colecionados, coordenados e postos entre si em confronto. Agi, portanto, em relação aos Espíritos como o teria feito com os homens: para mim, foram, desde o menor até ao mais elevado, meios de obter informes e não reveladores predestinados.
A estas declarações, obtidas nas Obras Póstumas de Allan Kardec, deve-se ajuntar que, de início, o Sr. Rivail, em vez de ser entusiasta dessas manifestações e ocupado por outras preocupações, quase as abandonou, coisa que teria feito não fosse os insistentes pedidos dos Srs. Carlotti, René Taillandier, membro da Academia das Ciências, Tiedeman-Manthése, Sardou, pai e filho, e Didier, editor, que durante cinco anos vinham acompanhando o estudo de tais fenômenos e haviam compilado cinqüenta cadernos de diferentes comunicações, que não conseguiam ordenar. Conhecedores das vastas e raras aptidões de síntese do Sr. Rivail, esses senhores mandaram-lhe os cadernos, solicitando que deles tomasse conhecimento e os coordenasse --- ordenasse-os. Tal trabalho era árduo e tomava muito tempo, devido às falhas e obscuridades dessas comunicações; o sábio enciclopedista não podia aceitar essa tarefa cansativa e absorvente, em virtude de outros trabalhos.
Uma noite, através de um médium, seu Espírito Protetor, deu-lhe uma comunicação toda pessoal, em que lhe dizia, de permeio a outras coisas, tê-lo conhecido em uma existência anterior, quando, ao tempo dos Drúidas, ambos viviam nas Gálias. Ele usava, então, o nome de Allan Kardec, e, como continuamente aumentava a amizade que lhe guardara, esse Espírito prometia-lhe auxiliá-lo na tarefa importantíssima a que ele era solicitado, e que com muita facilidade empreenderia.
O Sr. Rivail, portanto, entregou-se à obra: tomou os cadernos, anotou-os cuidadosamente. Depois de acurada leitura, eliminou as repetições e ordenou em sua respectiva posição cada ditado, cada relatório de sessão; apontou as falhas a preencher, as obscuridades a aclarar, e organizou o questionário necessário para atingir esse resultado.
Até então --- ele mesmo o diz --- as sessões realizadas na casa do Sr. Baudin não tinham nenhum fim certo; propus-me, aí, a encontrar a solução dos problemas que me despertavam interesse, sob o ponto de vista da Filosofia, da Psicologia e da Natureza do Mundo Invisível. Ia às sessões com uma série de perguntas preparadas e, metodicamente dispostas, elas eram respondidas com precisão, profundeza e de maneira lógica.
A partir de então, as reuniões assumiram feição muito diversa, e, em meio aos assistentes, achavam-se pessoas sérias que tomaram vivo interesse pelo trabalho. Se acaso eu faltasse, as sessões ficavam como que tolhidas, sendo que as questões de somenos haviam perdido o atrativo para a maioria. De início, eu não visava senão a minha própria instrução. Depois, percebendo que tudo aquilo formava um conjunto e assumia os contornos de uma doutrina, tive a idéia de o publicar para instrução de todos. Essas mesmas questões foram as que, paulatinamente desenvolvidas e completadas, constituíram a base de O Livro dos Espíritos.
Em 1856, o Sr. Rivail freqüentou as sessões espíritas que eram feitas à rua Tiquetone, na residência do Sr. Roustan, com Mlle. Japhet, sonâmbula, que conseguia, como médium, comunicações bastante interessantes, com o auxilio da cesta de bico aguçado; fez que fossem examinadas por esse médium as comunicações que conseguira e postas anteriormente em ordem. Tal trabalho foi realizado, de início, nas sessões comuns; mas, por solicitação dos Espíritos, e para que fosse dedicado mais cuidado e atenção a esse exame, prosseguiram-no em sessões particulares.
Não me dei por satisfeito com esse exame --- prossegue dizendo Allan Kardec --- que os Espíritos me haviam recomendado. Por força das circunstâncias, tendo-me posto em contato com outros médiuns, sempre que a ocasião se oferecia, eu a aproveitava para propor algumas das questões que se me assemelhavam das mais melindrosas. Desse modo foi que mais de dez médiuns emprestaram seu concurso a esse trabalho. E foi da comparação e da reunião de todas essas conclusões, ordenadas, classificadas e muitas vezes refeitas no silêncio da meditação, que formei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, que veio à luz em 18 de abril de 1857.
Esse livro era em formato grande, in-4, em duas colunas, uma destinada às perguntas, outra, em frente, às respostas. No instante de dá-lo à publicação, o autor ficou bastante embaraçado em resolver como o deveria assinar, se com o seu nome --- Denizard-Hippolyte-Léon Rivail --- ou com um pseudônimo. Por ser muito conhecido o seu nome no mundo científico, devido aos seus trabalhos anteriores, e podendo dar origem a uma confusão, talvez até prejudicar o êxito do empreendimento, ele adotou a sugestão de o assinar com o nome de Allan Kardec que, conforme seu guia lhe revelara, trouxera dos tempos dos Druídas.
A obra obteve um êxito tal que prontamente se esgotou a primeira edição. Allan Kardec fê-la reeditar em 1858 sob a forma atual, in-12, revista, corrigida e consideravelmente aumentada.
Em 25 de março de 1856, Allan Kardec estava em seu gabinete de trabalho, prestes a compulsar as comunicações e organizar O Livro dos Espíritos, quando escutou repetidas pancadas na parede. Investigou, sem encontrar a causa, e voltou a entregar-se à obra. Sua mulher, tendo entrado por volta das dez horas, escutou os mesmos ruídos; procuraram, mas inutilmente, o lugar de onde provinham. Residiam, então, à rua dos Mártires, 8, segundo andar, ao fundo.
Escreve Allan Kardec:
No dia imediato, sendo dia de sessões em casa do Sr. Baudin, narrei o acontecido e pedi a explicação dele.
P. Ouvistes o fato que acabo de contar. Podereis explicar-me a razão dessas pancadas que se fizeram ouvir tão insistentemente?
R. Era o teu Espírito Familiar.
P. Com que finalidade vinha bater assim?
R. Desejava pôr-se em comunicação contigo.
P. Podereis dizer-me o que desejava ele?
R. Podes dirigir a ele mesmo a pergunta, porque está presente.
P. Meu Espírito Familiar, quem quer que sejais, agradeço-vos por virdes visitar-me. Quereis ter a bondade de esclarece-me quem sois?
R. Meu nome, para ti, será A Verdade, e todos os meses, por um quarto de hora, aqui estarei, ao teu dispor.
P. Ontem, quando batestes, no momento em que eu trabalhava, tínheis algo de particular a dizer-me?
R. O que pretendia dizer-te relacionava-se com o trabalho que realizavas. O que estavas escrevendo me desagradava e eu desejava que parasses.
Nota - O que eu escrevia era, exatamente, referente aos estudos que fazia a respeito dos Espíritos e suas manifestações.
P. A vossa desaprovação dizia respeito ao capítulo que eu escrevia, ou ao conjunto do trabalho?
R. Ao capítulo de ontem: Faço-te o juiz dele. Relê-o esta noite. Descobrirás os erros e os corrigirás.
P. Mesmo eu não estava muito contente com esse capítulo e hoje o refiz. Está melhor?
R. Está, porém não muito bom. Lê da terceira à trigésima linha e encontrarás um grave erro.
P. Rasguei aquele que ontem fizera.
R. Não importa. Essa destruição não impede a subsistência do erro. Relê e verás.
P. A alcunha de Verdade que adotais é uma alusão à verdade que eu busco?
R. Quiçá, ou, pelo menos, é um guia que te auxiliará e protegerá.
P. É-me permitido evocar-vos em minha casa?
R. Sim, para que eu possa assistir-te pelo pensamento. Porém, no tocante a respostas escritas em tua casa, não será tão breve que as conseguirás.
P. Podereis vir mais assiduamente do que todos os meses?
R. Sim, porém, não prometo senão uma vez por mês, até nova ordem.
P. Animastes alguma personagem conhecida na Terra?
R. Disse-te que era para ti A Verdade, e isso requer discrição de tua parte; nada saberás além disso.
De regresso à sua casa, Allan Kardec deu-se pressa em reler o que escrevera e verificou, assim, o grave erro que efetivamente cometera, A distância de um mês marcada para cada comunicação do Espírito Verdade, poucas vezes foi mantida. Ele se manifestou com freqüência a Allan Kardec, não em sua casa, porém, onde por espaço de um ano não pôde receber comunicação alguma, por nenhuma espécie de médium, e sempre que esperava conseguir algum resultado, era detido por uma causa qualquer e inesperada, que se opunha a isso,
Foi no dia 30 de abril de 1856, na residência do Sr. Roustan, através da médium Mlle. Japhet, que Allan Kardec recebeu a primeira revelação da missão que devia desempenhar. Tal aviso, de início muito obscuro, foi reafirmado no dia 12 de junho de 1856, pela médium Mlle. Aline C. A 6 de maio de 1857, a Sr.ª Cardone, através da leitura das linhas de mão de Allan Kardec, deu confirmação das ditas anteriores comunicações, das quais não tivera conhecimento. Por fim, a 12 de abril de 1860, em casa de Sr. Dehan, tendo como intermediário o Sr. Croset, médium, essa missão foi outra vez confirmada por uma comunicação espontânea, obtida na ausência de Allan Kardec.
O mesmo aconteceu com respeito ao seu pseudônimo. Inúmeras comunicações, vindas dos mais diferentes pontos, vieram reafirmar e fortalecer a primeira comunicação obtida a esse respeito.
Levado pelos acontecimentos e pelos documentos que tinha em mãos, e tendo em vista o êxito de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec formara o projeto de editar um jornal espírita. Dirigira-se ao Sr. Tiedeman, solicitando-lhe auxilio pecuniário, porém este não se animara a participar dessa empresa. Allan Kardec indagou de seus guias, no dia 15 de novembro de 1857, por meio da Srta. E. Dufaux, como devia proceder. Respondeu-se-lhe que pusesse em execução a sua idéia e não se preocupasse com o resto.
Dei-me pressa em redigir o primeiro número --- diz Allan Kardec --- e fiz que ele aparecesse no dia 1º de janeiro de 1858, sem dizer a pessoa alguma. Não contava com um assinante, nem sócio capitalista. Fi-lo, assim, totalmente por minha conta e risco, e não tive do que me arrepender, porque o êxito foi muito além de minhas esperanças. A contar de 1º de janeiro, os números apareceram ininterruptamente e, como o previra o Espírito, esse jornal foi para mim um poderoso auxiliar. Reconheci, mais tarde, ser uma felicidade para mim não ter contado com um sócio capitalista, porque ficava mais livre, ao passo que um estranho interessado pretenderia impor-me suas idéias e a sua vontade e poderia obstaculizar-me a marcha. Só, não precisaria eu prestar contas a ninguém, por mais dispendiosa que, como trabalho, fosse a minha tarefa.
E essa tarefa cresceria sempre em trabalho e responsabilidades, em incessantes batalhas contra obstáculos, ciladas e perigos os mais diversos. À proporção, contudo, que a tarefa se fazia mais áspera, esse enérgico lutador se elevava, igualmente, à altura dos acontecimentos, que jamais o surpreenderam. E, por onze anos, nessa Revista Espírita, que vimos de observar como nasceu modestamente, ele enfrentou todas as borrascas, todas as invejas, todos os ciúmes que não lhe foram poupados, como ele próprio conta e como lhe fora anunciado quando fora revelada sua missão. Essa comunicação e as reflexões anotadas por Allan Kardec demonstram-nos, sob um prisma pouco lisonjeiro, a situação naquele período, mas ressaltam, também, o grande valor do fundador do Espiritismo e o seu galardão por ter sabido triunfar.
Médium, Mlle. Aliene C. --- 12 de junho de 1856:
P. Quais são as razões que me fariam fracassar? Seria a insuficiência de mínimas aptidões?
R. Não. Porém, a missão dos reformadores é repleta de obstáculos e perigos; a tua é áspera; aviso-te, porque é ao mundo todo que se trata de agitar e transformar. Não acredites te seja bastante publicar um livro, dois, dez livros, e estares sossegadamente em tua casa. Não é necessário que te mostres no conflito. Ódios terríveis estão açulados contra ti, implacáveis inimigos tramarão tua perda; estarás sujeito à calúnia, à traição, ainda dos que te parecerão os mais dedicados; as tuas melhores instruções serão impugnadas e desnaturadas; desfalecerás, mais de uma vez, ao peso da fadiga; em uma palavra, é uma batalha quase incessante que terás de suportar, com sacrifícios de teu repouso, de tua paz, de tua saúde até, e mesmo de tua vida, porque não hás de viver muito tempo. Pois bem. Em vez de uma vereda florida, encontrarás apenas sob teus passos espinhos, pontiagudas pedras e serpentes. Para tais missões não é suficiente a inteligência. Antes do mais, é preciso agradar a Deus, com a humildade, a modéstia e o desinteresse que abatem os orgulhosos e os presumidos. Para combater os homens é necessário, ainda, prudência e tato, para encaminhar devidamente as coisas, e não comprometer-lhes o êxito com medidas ou palavras inadvertidas. Precisa-se, enfim, devotamento, abnegação e estar preparado para todos os sacrifícios.
Vês que tua missão está sujeita a condições que dependem de ti.
Espírito Verdade.
Nota --- É Allan Kardec que se expressa deste modo:
Esta nota, escrevo-a no dia 1º de janeiro de 1867, dez anos e meio após ter-me sido esta comunicação dada, e verifico ter ela se realizado em todos os pontos, porque passei por todas as vicissitudes que nela me foram profetizadas. Tenho sido alvo do ódio de implacáveis inimigos, da calúnia, da injúria, da inveja. do ciúme. Contra mim têm-se publicado infames libelos; minhas melhores instruções foram deturpadas; tenho sido traído por aqueles em quem mais depositava confiança, e tenho sido pago com a ingratidão daqueles a quem prestei serviços. A Sociedade de Paris tornou-se um foco de intrigas, tramadas por aqueles que se diziam a meu favor, os quais, amáveis em minha presença, na ausência me destratavam. Afirmaram que aqueles que seguiam meu partido eram assalariados por mim com o dinheiro que eu arrecadava com o Espiritismo. Não sei mais o que é repouso. Mais de uma vez desfaleci, devido ao excesso de trabalho. Minha saúde se alterou e comprometi minha existência.
Contudo, graças à proteção e assistência dos bons Espíritos, que incessantemente me têm dado provas evidentes de sua solicitude, sou feliz por reconhecer que não experimentei ainda nenhum instante de esmorecimento, nem de desânimo, e que constantemente prossegui em minha tarefa com o mesmo ardor, sem me preocupar com a maledicência de que me faziam alvo. De acordo com a comunicação do Espírito Verdade, devia eu esperar tudo isso, e tudo se verificou.
Depois de tomarmos conhecimento de todas essas lutas, de todas as infâmias de que Allan Kardec foi vítima, como ele se engrandece aos nossos olhos e como seu esplendente triunfo assume mérito e brilho! Em que se tornaram esses invejosos, esses pigmeus que tentaram obstruir-lhe o caminho? Na maioria, são desconhecidos os seus nomes, ou não despertam nenhuma lembrança: o olvido os retomou e sepultou eternamente em suas sombras, ao passo que o nome de Allan Kardec, o intemerato lutador, o audaz pioneiro, passará à posteridade com a sua auréola de glória tão legitimamente conquistada.
A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas foi fundada no dia 1º de abril de 1858. Até este dia, as reuniões se realizavam em casa de Allan Kardec, na rua dos Mártires, com Mlle. Dufaux como médium principal. No seu salão podiam estar de quinze a vinte pessoas. Em breve, ele reuniu aí mais de trinta. Tornando-se esse local, então, muito acanhado, e desejosos de não sobrecarregar Allan Kardec com todos os encargos, alguns dos que aí assistiam resolveram fundar uma sociedade espírita e alugar um outro local para efetuarem as reuniões. Era, porém, necessário, para se poderem reunir, alcançar o reconhecimento e a autorização da polícia. O Sr. Dufaux, que conhecia pessoalmente o prefeito de polícia da época, encarregou-se de dar os primeiros passos para esse desideratum e, graças ao Ministro do Interior, gen. X, adepto das novas idéias, obteve-se a autorização em quinze dias, ao passo que, pelo processo comum, teriam sido necessários meses, sem muita probabilidade de sucesso.
A Sociedade foi, então, regularmente formada e tinha suas reuniões todas as terças-feiras, no local que fora alugado no Palais-Royal, na Galeria Valois. Permaneceu aí por um ano, do dia 1º de abril de 1858 a 1º de abril de 1859. Não lhe sendo possível lá ficar por mais tempo, fazia suas reuniões todas as sextas-feiras em um dos salões do Restaurante Douix, ainda no Palais-Royal, galeria Montpensier, de 1º de abril de 1859 a 1º de abril de 1860, ocasião em que se instalou em sua sede própria, à rua e passagem de Santana, 59.
Após ter dado conta das condições em que se formou a Sociedade e da tarefa que precisou desempenhar, Allan Kardec exprime-se assim (Revista Espírita, 1859, pág. 169) :
Em minhas funções, que posso afirmar laboriosas, empreguei toda a solicitude e toda a dedicação de que dispunha. Do ponto de vista administrativo, empreguei esforços por conservar nas sessões uma ordem rigorosa e por dar-lhe um caráter de gravidade, sem o que o prestígio de assembléia séria teria desaparecido muito cedo.
Agora, quando o meu trabalho está findo e dado o impulso, devo inteirar-vos da decisão que tomei, de renunciar futuramente a qualquer espécie de função na Sociedade, mesmo a de Diretor de Estudos. Não aspiro senão a um título --- apenas o de simples membro titular, com o qual me sentirei sempre feliz e honrado.
A razão de minha decisão está na multiplicidade de minhas tarefas, que diariamente aumentam, pela extensão de minhas relações. Porque, além dos trabalhos que vós sabeis, preparo outros mais relevantes, que requerem longos e laboriosos estudos e que necessitarão mais de dez anos. Ora, as tarefas da Sociedade absorvem muito tempo, tanto para o preparo, como para a coordenação e a passagem a limpo.
Exigem uma assiduidade quase sempre prejudicial às minhas ocupações pessoais, já que a iniciativa quase exclusiva que me deixais se torna indispensável. É a esta causa, meus senhores, que eu devo o fato de tantas vezes ter usado da palavra, lamentando freqüentemente que os membros superiormente esclarecidos que temos nos privassem de suas luzes. Desde muito tempo tinha o desejo de demitir-me de minhas funções: em várias ocasiões manifestei isso muito explicitamente, seja aqui, seja em particular a muitos dos meus companheiros, e sobretudo ao Sr. Ledoyen. Tê-lo-ia feito mais cedo, não fora o temor de causar perturbação na Sociedade.
Afastando-me no meio do ano, poderiam crer ser uma deserção, e era necessário não darmos esse prazer aos nossos opositores. Cumpri, assim, a minha tarefa até ao fim. Hoje, contudo, que essas causas cessaram, apresso-me em vos participar minha decisão, para não criar embaraços à escolha que fareis. É justo que cada um participe dos trabalhos e das honras.
Adiantemos logo que essa demissão não foi aceita e que Allan Kardec foi reeleito por unanimidade, com exceção de um voto e uma cédula em branco. Diante dessa manifestação de simpatia, ele se resignou e manteve-se em suas funções.
Em setembro de 1860, Allan Kardec empreendeu uma viagem de propaganda à nossa região, e aqui temos uma referência da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas:
O Sr. Allan Kardec presta contas do resultado de sua viagem, agora terminada, no interesse do Espiritismo, e felicita-se pela cordialidade da recepção que por toda parte encontrou, sobretudo em Sens, Mácon, Lion e Saint-Etinne. Em toda parte onde esteve observou os progressos relevantes da doutrina. Porém, o que é acima de tudo digno de menção é que, em nenhuma parte se fazia dela divertimento, mas que, em vez disso, dela se ocupam de modo sério, e que em todo lugar alcançam sua finalidade e futuras conseqüências.
Há, indubitavelmente, inúmeros adversários, sendo os mais ferrenhos os inimigos interessados. Mas os gracejadores diminuem sensivelmente. Percebendo que seus sarcasmos não levam para seu lado os motejadores, e que mais ajudam do que impedem o progresso das novas crenças, principiam a entender que nada ganham com isso e gastam o seu espírito em pura perda, e desse modo se calam. Uma expressão muito característica em todo lugar parece ser a ordem do dia: O Espiritismo está no ar. Por si mesma ela dá a medida do estado de coisas.
É, porém, especialmente em Lion, que os resultados são mais extraordinários. Os espíritas são, nesta cidade, numerosos em todas as classes, e no meio operário contam-se por centenas. A Doutrina Espírita tem exercido sobre os operários uma influência muito salutar, sob o ponto de vista da ordem, da moral e das idéias religiosas. Em síntese, a propagação do Espiritismo avança com a mais encorajadora rapidez.
No transcorrer dessa viagem, Allan Kardec fez um discurso estupendo, no banquete realizado a 19 de setembro de 1860, do qual temos aqui alguns trechos, próprios a nos interessar, a nós que desejamos substituir dignamente esses trabalhadores da primeira hora:
O que primeiramente me impressionou foi o número de adeptos. Eu bem sabia que Lion os tinha em número elevado, mas longe estava de supor que fosse tão considerável, porque eles se contam por centenas e, em pouco tempo, --- assim espero --- já não se poderão mais contar.
Contudo, se Lion distingue-se pelo número, não menos o faz pela qualidade, o que vale mais. Por toda parte não achei senão espíritas sinceros, entendendo a doutrina sob seu ponto de vista real. Existem, meus senhores, três espécies de adeptos: aqueles que se limitam a acreditar na realidade das manifestações e que buscam, primeiramente, os fenômenos. Para eles, o Espiritismo é tão-somente uma seqüência de fatos mais ou menos interessantes. Os segundos, nele vêem outra coisa acima dos fatos, entendem seu alcance filosófico, admiram a moral que deles emana, porém não a praticam. Para eles, a caridade cristã é uma formosa máxima e nada mais. Os terceiros, por fim, não se dão por contentes em admirar a moral: põem-na em prática e aceitam suas conseqüências.
Inteiramente convencidos de que a existência terrestre é uma prova passageira, empregam seus esforços em aproveitar esses breves momentos para caminhar na estrada do progresso que os Espíritos lhe traçam, esforçando-se em praticar o bem e em reprimir suas más inclinações. As suas relações são sempre seguras, visto como suas convicções os afastam de todo pensamento do mal. A caridade é, em qualquer oportunidade, a regra da sua conduta, e esses são os verdadeiros espíritas, ou antes, espíritas cristãos.
Pois bem, meus senhores, digo-vos isto com satisfação: não achei, ainda, aí, nenhum adepto da primeira categoria. Em nenhum lugar encontrei quem se ocupasse do Espiritismo apenas por curiosidade, com intuitos frívolos. Em todo lugar a finalidade é grave e sérias as intenções. E, se acreditarmos no que me dizem, existem muitos da terceira categoria. Honra seja feita, portanto, aos espíritas lioneses, por terem, desse modo, entrado largamente na senda do progresso, sem o qual não teria objetivo o Espiritismo. Este exemplo não será em vão, trará suas conseqüências e não é sem razão --- assim o vejo --- que os Espíritos me responderam noutro dia, através de um dos vossos mais afeiçoados médiuns, embora dos mais obscuros, quando eu lhes patenteava minha surpresa: Por que te admiras disso? Lion foi a cidade dos mártires. A fé aí é vívida: ela dará apóstolos ao Espiritismo. Se Paris constituí a cabeça, Lion será o coração.
Esse conceito de Allan Kardec a respeito dos espíritas de Lion, na época em que viveu, é para nós imensa honra, mas também deve ser uma regra de conduta. Devemos esforçamo-nos para sermos merecedores desses elogios, aprofundando, por nosso turno, as lições do Mestre e, acima de tudo, adaptando a elas nosso procedimento. Noblesse oblige, diz um rifão; saibamos lembrar-nos sempre disso e manter alto e firme o estandarte do Espiritismo.
Contudo, Allan Kardec não se dava por satisfeito em lançar flores sobre nossos amigos; dava-lhes, acima de tudo, sábios conselhos, sobre os quais, por nosso lado, devemos meditar.
Recebido dos Espíritos o ensinamento, os diversos grupos, assim como os indivíduos, encontram-se sob a influência de certos Espíritos que presidem aos seus trabalhos, ou dirigem-nos moralmente. Se esses Espíritos não estão de acordo entre si, a questão fica em saber qual é o que merece maior confiança. Será, sem dúvida, aquele cuja teoria não puder levantar qualquer objeção séria. Em uma palavra, aquele que em todos os pontos der o maior número de provas de superioridade.
Se tudo nesse ensino é bom e racional, não importa o nome que toma o Espírito. E nesse particular a questão da identidade é completamente secundária. Se, debaixo de um nome respeitável, o ensino peca pelas qualidades essenciais, de pronto podeis concluir que é um nome apócrifo e que se trata de Espírito impostor ou galhofeiro. Regra geral: O nome jamais é uma garantia. A exclusiva e verdadeira garantia de superioridade é o pensamento e a maneira pela qual é expresso. Os Espíritos mistificadores tudo podem imitar, tudo, exceto o saber e o sentimento verdadeiros.
Freqüentemente acontece que, para fazer valer certas utopias, alguns Espíritos alardeiam falso saber e acreditam impô-las escolhendo no manancial de termos técnicos tudo quanto pode fascinar aquele que é facilmente crédulo. Contam, ainda, com um método mais certo: é alertar as exterioridades da virtude. Auxiliados pelas grandes palavras --- caridade, fraternidade, humildade --- julgam poder passar os mais grosseiros absurdos. E é isto que sucede muitas vezes, quando não se está prevenido.
É necessário, portanto, evitar o deixar-se seduzir pelas aparências, não só da parte dos Espíritos, como também da parte dos homens. Ora, eu confesso, aí temos uma das maiores dificuldades. Jamais, porém, se disse que o Espiritismo fosse uma doutrina fácil. Tem seus obstáculos que não se podem evitar a não ser pela experiência.
Para fugir ao laço, é necessário, antes de tudo, fugir ao entusiasmo enceguecedor, ao orgulho que leva alguns médiuns a suporem-se os únicos intérpretes da Verdade. É necessário que tudo seja examinado friamente, sensatamente pesado, confrontado e, se desconfiarmos do próprio juízo, o que é sempre mais prudente, é urgente recorrer a outras pessoas, conforme o provérbio: Quatro olhos vêem melhor do que dois. Apenas um falso amor-próprio ou uma obsessão podem fazer insistir-se numa idéia comprovadamente falsa e que o bom senso de cada um repele.
Aqui temos os conselhos tão sábios e tão práticos dados por aquele que pretenderam fazer passar por entusiasta, místico, alucinado. E essa regra de conduta, formulada no início, não foi ainda invalidada, nem pela observação, nem pelos acontecimentos. É sempre a trilha mais segura, mais prudente, a única que devem seguir aqueles que desejam se ocupar do Espiritismo.
Allan Kardec trabalhava, então, no Livro dos Médiuns, que surgiu na primeira quinzena de janeiro de 1861, editado pelos Srs. Didier & Cia., livreiros-editores. O Mestre explica sua razão de ser nos termos seguintes, na Revista Espírita.
Foi nosso objetivo, nesse trabalho, fruto de longa experiência e de cansativos estudos, esclarecer todas as questões que se referem à prática das manifestações. Ele apresenta, de conformidade com os Espíritos, a explicação teórica dos diversos fenômenos e condições em que eles podem produzir-se. Contudo, a parte referente ao desenvolvimento e ao exercício da mediunidade foi, acima de tudo, de nossa parte, objeto de essencialíssima atenção.
O Espiritismo experimental está rodeado de muitos obstáculos, muito além dos que geralmente se pode acreditar, e os escolhos que aí se encontram são numerosos. É o que provoca tantas decepções a todos quantos se ocupam dele sem possuir experiência e conhecimentos necessários. Nosso objetivo foi prevenir os investigadores contra tais dificuldades, nem sempre livres de inconvenientes, para quem quer que se aventure, imprudentemente, através desse novo terreno. Não podíamos esquecer um ponto tão importante, e o tratamos com cuidado igual á sua importância.
Constitui-se ainda o Livro dos Médiuns o vade mecum de todos os que desejam se entregar proveitosamente à prática do Espiritismo experimental. Nada surgiu de melhor nem de mais completo nessa ordem de idéias. É também o mais seguro guia de que nos podemos servir para explorar, sem risco, o terreno da mediunidade.
No ano de 1861, Allan Kardec fez nova viagem espirita a Sens, Mácon e Lion, e constatou que o Espiritismo, em nossa cidade, atingira a maioridade.
Efetivamente, não é mais por centenas -- diz ele -- que se contam aí os espíritas, como no ano passado; é por milhares ou, melhor dizendo, não mais se contam, e pode-se calcular que, a continuar na mesma proporção, dentro de um ano ou dois serão mais de trinta mil. O Espiritismo, aí, faz adeptos em todas as classes, mas é principalmente na classe operária que se tem difundido com maior rapidez, e isso não é de pasmar. Sendo essa classe a mais sofredora, volta-se para o lado que lhe proporciona maior consolação.
Se os que bradam contra o Espiritismo lhe oferecessem outro tanto, essa classe estaria com eles. Porém, contrariamente, pretendem tirar-lhe justamente aquilo que a auxilia a carregar: o seu fardo de miséria. E isto tem sido o meio mais próprio de perderem suas simpatias e fazer aumentar as nossas fileiras. O que presenciamos com nossos próprios olhos é de tal maneira característico e contém ensino tão excelente, que julgamos dever consagrar aos operários a maior parte de nosso relatório.
No ano passado, havia somente um centro de reunião, o dos Brotteaux, presidido por Dijoux, chefe de oficina, e sua mulher. Depois organizaram-se outros em diversos pontos da cidade: em Guillotiére, em Perrache, em Croix-Rousse, em Vaise, em Saint-Just etc., não contando numerosas reuniões particulares. Existiam então apenas dois ou três médiuns neófitos. Nos dias de hoje existem em todos os grupos e muitos são de primeira ordem. Em apenas um grupo vimos cinco escreverem simultaneamente. Da mesma forma, vimos um rapaz, ótimo médium vidente, no qual pudemos verificar essa faculdade exaltada ao mais alto grau.
Indubitavelmente, é muito de se desejar que se multipliquem os adeptos, mas, acima do número vale a qualidade. Pois bem, declaramo-lo bem alto: em nenhuma parte encontramos reuniões espíritas mais edificantes do que as dos operários lioneses, no tocante à ordem, ao recolhimento e à atenção que prestam às instruções de seus guias espirituais. Lá estão homens, velhos, senhoras, jovens, crianças mesmo, cuja atitude de respeito está em contraste com a idade. Nunca uma criança perturbou por momentos o silêncio das nossas sessões, freqüentemente longas; pareciam quase tão desejosas como seus país de recolher nossas palavras.
Entretanto, isto não é tudo: o número das revoluções morais, entre os operários, é quase tão grande quanto o dos adeptos com hábitos viciosos corrigidos, paixões acalmadas, ódios apaziguados, lares tornados calmos, em uma palavra, as mais lídimas virtudes cristãs desenvolvidas. E isso pela confiança no futuro em que não acreditavam, doravante inabalável, que lhes dão as comunicações espíritas. É uma ventura para eles assistirem a essas instruções, das quais saem reconfortados contra as desventuras. Muitos vão ao ponto de caminharem mais de uma légua, debaixo de qualquer tempo, inverno ou verão, tudo enfrentado para não faltarem a uma reunião. É que não os move e fé vulgar, mas aquela firmada sobre uma convicção profunda, raciocinada e não cega.
Por ocasião dessa viagem, novo banquete reuniu outra vez, sob a presidência de Allan Kardec, os membros da grande família lionesa espirita. No dia 19 de setembro de 1860 os convivas eram somente uns trinta; a 19 de setembro de 1861 o número subia a 160,
representando os diversos grupos, que se consideram todos como membros de uma enorme família, entre os quais não existe sombra de ciúme e de rivalidade, o que --- afirma o Mestre --- temos, de passagem, imensa satisfação em registrar. A maior parte dos assistentes era composta de operários e todos notaram a perfeita ordem que reinou em todos os momentos. É que os verdadeiros espíritas põem seu contentamento nas alegrias do coração e não nos prazeres ruidosos.
A 14 de outubro do mesmo ano, temos Allan Kardec em Bordéus, onde, como em todas as cidades pelas quais passava, semeava a boa nova e fazia brotar a fé no futuro.
Além das viagens e dos trabalhos de Allan Kardec, esse ano de 1861 ficará inesquecível nos anais do Espiritismo por um fato de tal forma monstruoso que quase parece incrível. Quero referir-me ao auto-de-fé levado a efeito em Barcelona, onde foram queimadas pela fogueira dos Inquisidores trezentas obras espíritas.
O Sr. Maurício Lachâtre, nessa ocasião, era livreiro estabelecido em Barcelona, em relações e comunhão de idéias com Allan Kardec. Desse modo, solicitou a este que lhe mandasse certo número de obras espíritas, para as expor à venda e fazer propaganda da nova filosofia.
Tais obras, talvez em número de trezentas, foram enviadas nas condições comuns, com uma declaração em ordem do conteúdo das caixas. Chegadas à Espanha, foram cobrados os direitos alfandegários ao destinatário e arrecadados pelos agentes do governo espanhol. Porém, a entrega das caixas não foi realizada: o Bispo de Barcelona, julgando essas obras prejudiciais à fé católica, fez confiscar a expedição pelo Santo Ofício.
Como não desejassem fazer chegar ao destinatário essas obras, Allan Kardec reclamou a sua devolução. Porém sua reclamação não surtiu efeito e o Bispo de Barcelona, fazendo-se de policiador da França, fundamentou sua recusa com a seguinte resposta: "A Igreja Católica é universal e estes livros sendo contrários à fé católica, não pode o governo permitir que eles passem a perverter a moral e a religião de outros países".
Estes livros não somente não foram devolvidos, como também os direitos aduaneiros ficaram para o fisco espanhol. Allan Kardec estava no seu direito de promover uma ação diplomática e obrigar o governo espanhol a efetuar a devolução das obras. Os Espíritos, contudo, o demoveram disso, dizendo ser preferível para a propaganda do Espiritismo deixar que essa ignomínia seguisse o seu rumo.
Reeditando os fastos e as fogueiras da Idade Média, o Bispo de Barcelona fez com que fossem queimadas em praça pública, pela mão do carrasco, as obras incriminadas.
Aqui temos, como documento histórico, o processo verbal dessa infâmia clerical.
Aos nove dias de outubro de 1861, às dez horas e meia da manhã, na esplanada da cidade de Barcelona, no local em que se executam os condenados à pena máxima, por ordem do Bispo desta cidade, foram queimados trezentos volumes e brochuras sobre o Espiritismo, a saber:
A Revista Espírita, diretor Allan Kardec;
A Revista Espiritualista, diretor Piérart;
O Livro dos Espíritos, por Allan Kardec;
O Livro dos Médiuns, pelo mesmo;
O Que é o Espiritismo, pelo mesmo;
Fragmento de Sonata, ditado pelo Espírito Mozart;
Carta de um Católico sobre o Espiritismo, pelo Dr. Grand;
A História de Joana d'Arc, ditada por ela mesma a Mlle. Ermance Dufaux;
A Realidade dos Espíritos Demonstrada pela Escrita Direta, pelo barão de Guldenstubbé.
Assistiram ao auto-de-fé:
Um padre, com seus hábitos sacerdotais, tendo em uma das mãos a cruz e na outra uma tocha;
Um tabelião encarregado de redigir o processo verbal do auto-de-fé;
O escrevente do tabelião;
Um funcionário superior da administração das alfândegas;
Três mozos (serventes) da alfândega, que tinham encargo de alimentar o fogo;
Um agente da alfândega, que representava o proprietário das obras condenadas pelo bispo;
Incalculável multidão enchia os passeios e cobria a esplanada onde ardia a fogueira;
Depois de o fogo consumir os trezentos volumes e brochuras espíritas, o sacerdote e seus auxiliares retiraram-se cobertos pelas vaias e maldições dos inúmeros assistentes, que bradavam: Abaixo a Inquisição!
Depois, várias pessoas aproximaram-se da fogueira e apanharam cinzas.
Diminuir-se-ia o horror de tais atos segui-los com a descrição dos comentários; ajuntemos apenas que ao reverbero dessa fogueira, o Espiritismo tomou um impulso inesperado em toda a Espanha, e, como tinham previsto os Espíritos, alcançou aí um número incontável de adeptos. Podemos, somente, como o fez Allan Kardec, contentarmo-nos com a propaganda valiosa que esse ato odioso fez em favor do Espiritismo. No que tange, porém, à propaganda que nós mesmos devemos fazer de nossa filosofia, jamais devemos olvidar estes conselhos do Mestre (Revista Espírita, 1863, pág. 367) :
O Espiritismo dirige-se àqueles que não crêem ou duvidam, e não aos que têm fé e aos quais essa fé é suficiente; não diz a quem quer que seja que renuncie às suas crenças para seguir as nossas, e nisto é conseqüente com os princípios de tolerância e de liberdade de consciência que professa. Por essa razão não poderíamos aprovar as tentativas que algumas pessoas fazem para converter às nossas crenças o clero, de qualquer comunhão que seja.
Tornaremos a repetir, portanto, a todos os espíritas; acolhei benignamente aos homens de boa vontade; propiciar a luz a quantos a buscam, pois com os que crêem não alcançareis êxito; não cometais violência à fé de ninguém, muito mais no que respeita ao clero do que aos seculares, porque estareis semeando em terrenos áridos; colocai a luz em evidência, para que a enxerguem os que a desejarem ver; mostrar os frutos da árvore e deles dar de comer dos que têm fome e não àqueles que se dizem saciados.
Tais conselhos, como todos os que partem de Allan Kardec, são límpidos, simples, e especialmente, práticos; é preciso que nos recordemos deles e os aproveitemos no tempo oportuno.
O ano de 1862 foi fértil em realizações para a difusão do Espiritismo, Num dia de janeiro surgiu a pequena e magnífica brochura de propaganda: O Espiritismo em sua mais simples expressão.
A finalidade desta publicação --- afirma Allan Kardec --- é apresentar, em quadro bastante resumido, um histórico do Espiritismo e uma idéia aproximada da doutrina dos Espíritos, para propiciar o conhecimento de seu fim moral e filosófico. Com um estilo claro e simples, tentamos pô-lo ao alcance de todas as inteligências. Contamos com o zelo de todos os bons espíritas, para que ele se difunda.
Tal apelo foi atendido, pois a pequena brochura difundiu-se profusamente, devendo muitos a esse magnífico trabalho ter entendido a finalidade e o alcance do Espiritismo.
Tendo os nossos antecessores no Espiritismo transmitido a Allan Kardec, no Ano Novo, a expressão de seu sentimento de agradecimento, aqui temos como o Mestre respondeu a esse testemunho de simpatia:
Caríssimos irmãos e amigos de Lion:
A coletiva manifestação que bondosamente me transmitistes, na oportunidade do Ano Novo, provocou em mim vivíssimo contentamento, provando-me que, de mim, conservastes boa recordação; porém, o que me proporcionou maior felicidade, nesse ato espontâneo de vossa parte, foi encontrar, entre as inúmeras assinaturas que nele aparecem. representantes de quase todos os grupos, porque é sinal de harmonia entre eles. Sinto-me feliz por perceber que compreendestes à perfeição, o fim dessa organização, cujos resultados desde já podeis apreciar, porque deve ser agora evidente, para vós, que uma sociedade única seria quase impossível.
Agradeço, bondosos amigos, os votos que fazeis em minha intenção; eles são, para mim, tanto mais agradáveis quanto ser que vêm do coração, e são esses que Deus atende. Ficar, assim satisfeitos, porque Ele os ouve todos os dias, dando-me a estupenda alegria no estabelecimento de uma nova doutrina, de ver aquela à qual me tenho dedicado engrandecer e prosperar, durante minha vida, com uma rapidez extraordinária; considero um imenso favor do céu ser testemunha do bem que ela já proporciona,
Esta certeza, da qual diariamente recebo os mais tocantes testemunhos, recompensa-me com juros todos os meus sofrimentos, minhas fadigas todas; não reclamo de Deus senão uma graça, que é a de dar-me força física necessária para concluir minha tarefa, que longe está de sua conclusão; porém, suceda o que suceder, terei sempre a melhor consolação, com a certeza de que a semente das idéias novas, semeada agora por toda parte, é imperecível; mais feliz do que muitos, que não trabalharam senão para o futuro, a mim me é dado contemplar os primeiros frutos.
Se tenho a lamentar algo, é que a escassez dos meus recursos pessoais tenha impedido que eu ponha em prática os planos que concebi para um progresso ainda mais rápido; se Deus, contudo, em sua sabedoria, entendeu dispor de modo diverso, deixarei esses planos aos nossos sucessores, os quais, indubitavelmente, serão mais felizes. Não obstante a exigüidade dos recursos materiais, o movimento que se verifica na opinião, vai além de toda expectativa; acreditar, meus irmãos, que nisso vosso exemplo não terá deixado de exercer sua influência. Recebei, pois, nossas felicitações, pelo modo como sabeis compreender e por em prática a Doutrina.
No ponto que atingiram, hoje, as coisas, e tendo em conta a caminhada do Espiritismo através dos obstáculos postos em seu trajeto, pode-se afirmar que as principais dificuldades estão vencidas e alcançou o seu lugar e está firmado sobre bases que, daqui para frente, desafiam os esforços de seus opositores.
Indagam porque uma doutrina, que torna feliz e melhor, pode fazer inimigos; é natural; o estabelecimento das melhores doutrinas fere sempre interesses, no início. Não é assim que tem sucedido com todas as invenções e descobertas que vieram revolucionar a indústria? Aquelas que hoje consideramos como benéficas, sem que as quais não se poderia mais passar, não suscitaram inimigos ferrenhos? Qualquer lei que reprima um abuso não tem contra si todos aqueles que vivem dos abusos? Como desejaríeis que uma doutrina que leva ao reino da caridade efetiva não fosse combatida por quantos vivem no egoísmo? E sabeis quão numerosos são na Terra!
Inicialmente, julgaram sepultá-la com a zombaria; hodiernamente, sabem que essa arma é impotente e que, sob o fogo das ironias, ela continuou seu caminho sem tropeçar. Não creiais que se considerem vencidos; não, o interesse material é obstinado. Reconhecendo que é uma potência com a qual, de hoje em diante, é preciso contar, vão assestar-lhe mais sérios ataques, mas que apenas comprovarão melhor a fraqueza deles. Alguns a atacarão diretamente por palavras e atos, e moverão a ela perseguição, mesmo na figura de seus adeptos, que eles tudo farão por desalentar, à força de obstáculos, ao passo que outros, secretamente e por caminhos disfarçados, tentarão miná-la surdamente,
Estai prevenidos de que a batalha não findou: fui avisado de que eles tentarão um derradeiro esforço. Não tenhais, contudo, receio; o penhor da vitória está nesta divisa: "Fora da caridade não há salvação". Arvorai-a bem alto, já que ela é a cabeça de Medusa para os egoístas.
A tática, que os inimigos já puseram em prática, mas que empregarão com novo ânimo, é tentar dividir os espíritas, criando sistemas divergentes e provocando entre eles a desconfiança e o ciúme. Não vos deixeis cair no enredo, e tende como acertado que quem quer que busque um meio, seja ele qual for, para romper a boa harmonia, não pode ser de boa intenção. É por essa razão que vos recomendo useis da maior circunspecção na formação dos vossos grupos, não apenas para vossa calma, como no interesse mesmo dos vossos trabalhos.
A natureza dos labores espíritas requer calma e conhecimento. Ora, não é possível nenhum reconhecimento quando se está preocupado com discussões e com a manifestação de sentimentos maus. Os sentimentos malévolos não existirão se existir fraternidade; a fraternidade não poderá, porém, existir em egoístas, ambiciosos e orgulhosos. Entre orgulhosos que se suscetibilizam e se ofendem por qualquer coisa, ambiciosos que se julgarão mortificados se não tiverem a supremacia, egoístas que pensam apenas em si, não demorará a introduzir-se a cizânia, e com ela a dissolução. É quanto nossos inimigos desejariam, e é o que procuram fazer.
Se um grupo deseja estar em condições de ordem, de calma e de estabilidade, é necessário que nele reine o sentimento fraternal. Todo grupo ou sociedade que se formar, não contando como base com a caridade efetiva, não tem vitalidade; ao passo que aqueles que se fundarem conformes com o verdadeiro espírito da doutrina encarar-se-ão como membros de uma mesma família que, não podendo habitar, todos sob o mesmo teto, habitam lugares diferentes, A rivalidade entre eles constituir-se-ia num contra-senso; não poderia existir onde domina a verdadeira caridade, porque não pode entender de duas maneiras a caridade.
Reconhecei, portanto, o verdadeiro espírita na prática da caridade por pensamentos, palavras e obras, persuadi-vos de quem quer que nutra em sua alma sentimentos de animosidade, de rancor, de ódio, de inveja ou de ciúme, engana a si mesmo se tem a pretensão de entender e praticar o Espiritismo.
O egoísmo e o orgulho matam as sociedades particulares, como fazem perecer os povos e a sociedade em geral...
Tudo merece citação nestes conselhos, tão justos como práticos; mas é necessário que nos limitemos, em virtude do tempo de que podemos dispor.
Atendendo pedido dos espíritos de Lion e de Bordéus, Allan Kardec empreendeu, em setembro e outubro, uma longa viagem de propaganda, por toda parte semeando a boa-nova e dando conselhos, apenas, porém, aos que lhes pediam; o convite que lhe dirigiram os grupos lioneses estava subscrito por quinhentas assinaturas. Uma publicação especial relatou essa viagem de mais de seis semanas, no transcurso das quais o Mestre presidiu a mais de cinqüenta reuniões em vinte cidades, onde por todo lugar foi alvo do mais cordial acolhimento e se sentiu feliz por constatar os grandes progressos do Espiritismo.
Sobre as viagens de Allan Kardec, como algumas influências hostis tivessem espalhado o boato de que eram feitas às custas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, sobre cujo orçamento, igualmente, sacava antecipadamente todos os seus gastos de correspondência e da manutenção, o Mestre rebateu, assim, essa falsidade:
Inúmeras pessoas, especialmente na província, julgaram que as despesas dessas viagens sobrecarregavam a Sociedade de Paris; foi preciso que desfizéssemos esse erro quando nos surgiu a oportunidade; aos que ainda o pudessem perfilhar, lembraremos o que afirmamos em outra circunstância (n.º de junho, 1862, pág., 167, Revista Espírita), que a Sociedade apenas provê as suas despesas correntes e não conta com reservas; para que pudesse acumular capital, necessário lhe seria que tivesse em mira o número; e isto é o que ela não faz nem quer fazer, pois seu fim não é a especulação, e porque o número nada acrescenta à importância dos trabalhos.
A influência que exerce é toda moral e está no caráter de suas reuniões, que oferecem ao estranho uma idéia de assembléia grave e séria; nisto consiste seu mais poderoso meio de propaganda, Desse modo, ela não poderia prover a tal despesa. As despesas de viagens, da mesma maneira que aqueles que nossas relações exigem para o Espiritismo, são tirados de nossos proventos pessoais e de nossas economias, acrescidas com o produto de nossas obras sem o qual não poderíamos atender a todos os encargos, que constituem para nós conseqüência da obra que encetamos. Diz-se isto sem vaidade, tão-somente para prestar homenagem à verdade, e para edificação daqueles, que pensam que nós capitalizamos.
No ano de 1862, Kardec fez ainda aparecer uma Refutação de Críticas contra o Espiritismo, sob o ponto de vista do materialismo, da ciência e da religião.
No mês de abril de 1864, publicou a Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo, com a explicação das parábolas de Cristo, aplicação e concordância das mesmas com o Espiritismo. O título desta obra, mais tarde, foi alterado, sendo hoje o Evangelho Segundo o Espiritismo.
Aproveitando-se do período das férias, Allan Kardec fez, em setembro de 1864, uma viagem a Antuérpia e Bruxelas. Fazendo sentir aos espíritas belgas a maneira como encarava os grupos e sociedades espíritas, relembra o que dissera já em Lion, no ano de 1861:
Vale mais, pois, existir em uma cidade cem grupos de dez a vinte crentes, onde nenhum se arrogue o domínio sobre os demais, do que uma só sociedade que a todos englobasse. Tal fracionamento em nada pode prejudicar a unidade dos princípios, já que a bandeira é uma só e que todos se encaminham para o mesmo objetivo.
As sociedades numerosas têm seu motivo de ser debaixo do ponto de vista da propaganda; porém, no tocante a estudos sérios e continuados, é preferível que se formem grupos íntimos.
No dia 1.º de agosto de 1865, Allan Kardec deu à publicidade nova obra: O Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo, obra em que são relatados inúmeros exemplos da situação dos Espíritos no mundo espiritual e na Terra, e os motivos que causaram essa situação.
Os extraordinários êxitos do Espiritismo, seu desenvolvimento quase inacreditável, deram-lhe incontáveis inimigos; e, à medida que se foi engrandecendo, cresceu, igualmente, a tarefa de Allan Kardec. O Mestre era dotado de férrea vontade, um poder de combatividade admirável; era um trabalhador incansável; levantava-se, em qualquer estação, já às quatro e meia e a tudo dava resposta, às polêmicas violentas lançadas contra o Espiritismo, contra ele mesmo, às inumeráveis cartas que lhe dirigiam; atendia à direção da Revista Espírita e da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, à codificação do Espiritismo e ao preparo de suas obras.
Esse excesso físico e intelectual acabou por esgotar-lhe o organismo, e muitas vezes os Espíritos precisam chamá-lo à ordem, para obrigá-lo a poupar a saúde. Ele, contudo, conhece que não viverá mais que uns dez anos, ainda, muitas comunicações o trouxeram prevenido desse termo e fizeram-no sentir, mesmo, que sua tarefa não seria concluída senão em nova existência, que se daria a breve espaço de sua próxima desencarnação; por essa razão ele não quer deixar passar a oportunidade de dar ao Espiritismo tudo quanto possa em força e vitalidade.
No ano de 1867, empreende curta viagem a Bordéus, Tours, e Orleans; depois, põe outra vez mãos à obra, para dar publicação, em janeiro de 1868, à Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Esta obra é das mais importantes, porque, do ponto de vista da ciência, constituí a síntese dos quatro primeiros volumes já publicados.
Allan Kardec entrega-se, em seguida, a um projeto de organização do Espiritismo, através do qual pretende imprimir mais vigor, mais ação à filosofia da qual se fez apóstolo, tentando desenvolver-lhe o lado prático e fazer que produza frutos. O constante objeto de suas preocupações é saber quem será seu substituto na obra, porque pressente estar próximo o seu trespasse; e a constituição que elabora tem justamente por finalidade prever as necessidades futuras da Doutrina Espírita.
Desde os primeiros anos do Espiritismo, Allan Kardec adquirira, com a venda de suas obras pedagógicas, um terreno de 2.666 metros quadrados, na avenida Ségur, atrás dos Inválidos. Como essa aquisição esgotou seus recursos, contraiu com o Crédit Foncier um empréstimo de 50.000 francos para mandar construir no terreno seis pequenas casas, com jardins; alimentava a fagueira esperança de recolher-se a uma delas, na Vila Ségur, e torná-la-ia, após a sua morte, em asilo a que se recolhessem, na velhice, os defensores indigentes do Espiritismo.
Em 1868, a Sociedade Espírita era reestruturada em novas bases o tornada sociedade anônima, com o capital de 40.000 francos, divididos em quarenta ações de mil francos, com o fim de explorar a livraria, a Revista Espírita e as obras de Allan Kardec. A nova sociedade devia instalar-se, no dia 1.º de abril, à rua de Lille, 7.
Allan Kardec, com o contrato de arrendamento na passagem de Santana, quase a findar-se, cogitava retirar-se para a Vila Ségur, para trabalhar mais afincadamente nas obras que lhe restavam fazer e das quais os planos e documentos já tinha reunidos. Estava, assim, em andamento todos os arranjos de transferência de domicílio, exigida pela extensão de seus múltiplos trabalhos, quando, no dia 31 de março, a doença do coração que o minava surdamente, pôs fim à sua robusta constituição e, como um raio, o arrebatou ao carinho dos seus discípulos. Essa perda foi enorme para o Espiritismo, que via partir o seu fundador e mais poderoso propagandista, e submergiu em profunda consternação todos aqueles que o haviam conhecido e amado.
Hippolyte-Léon-Denizard-Rivail --- Allan Kardec --- faleceu em Paris, à rua Santana, 25 (Galeria Santana, 59), 2º circunscrição e mairie de la Banque, no dia 31 de março de 1869, com 65 anos de idade, sucumbindo pela ruptura de um aneurisma.
Unânimes sentimentos receberam essa dolorosa notícia, e impressionante concorrência acompanhou ao Père Lachaise, sua última morada, os despojos mortais daquele que fora Allan Kardec, daquele que, através dos tempos, refulgirá como meteoro esplendente na aurora do Espiritismo.
Quatro orações proferiram-se à borda do túmulo do Mestre: a primeira pelo Sr. Levent, em nome de Sociedade Espírita de Paris; a segunda, feita pelo Sr. Camilo Flammarion, que não apenas fez um esboço do caráter de Allan Kardec, e do papel que seus trabalhos ocupam no movimento contemporâneo, como também, e principalmente, um exame da situação das ciências físicas, sob o ponto de vista do mundo invisível, das forças naturais ignoradas, da existência da alma e de sua indestrutibilidade. Em seguida, usou da palavra o Sr. Alexandre Delanne, em nome dos espíritas dos centros afastados; e, depois, o Sr. E. Müller, em nome da família e dos seus amigos, dirigiu ao morto querido os derradeiros adeuses.
A senhora Allan Kardec contava 74 anos quando seu esposo morreu. Sobreviveu-lhe até 1883, quando, a 21 de janeiro, faleceu, com a idade de 89 anos, sem deixar herdeiros diretos.
Estaria em erro quem acreditasse que, em razão de seus trabalhos, Allan Kardec devia ser, sempre, uma personagem fria e austera. Não era, contudo, assim. Esse grave filósofo, após discutir os pontos mais árduos da psicologia e da metafísica transcendental mostrava-se expansivo, esforçando-se, por distrair os convidados que ele, com freqüência, recebia na Vila Ségur; mantendo-se sempre digno e sóbrio em suas expressões, sabia adubá-las com o nosso velho sal gaulês, em rasgos de causticante e afetuosa bonomia. Gostava de rir, com esse belo riso franco, largo e comunicativo, e tinha talento todo seu para fazer que os outros partilhassem de seu bom humor.
Todos os jornais da época trataram da morte de Allan Kardec e buscaram medir-lhe as conseqüências. Temos aqui, como simples lembrança, o que a tal respeito escrevia o Sr. Pagés de Noyes, no Journal de Paris, de 3 de abril de 1869:
Aquele que por espaço tão longo de tempo ocupou o mundo científico e religioso debaixo de pseudônimo de Allan Kardec, tinha por nome Rivail, e faleceu na idade de 65 anos.
Vimo-lo deitado em um simples colchão, no centro das sessões a que há tantos anos presidia; vimo-lo com a fisionomia calma, como morrem aqueles que não são surpreendidos pela morte e que, tranqüilos quanto ao resultado de uma existência honesta e laboriosamente preenchida, imprimem como que um reflexo de pureza de sua calma sobre o corpo que deixaram.
Resignados pela crença em uma vida melhor, e pela convicção da imortalidade da alma, diversos discípulos tinham vindo lançar um último olhar àqueles lábios descorados, que, na véspera ainda, lhes falavam a linguagem da Terra. Contudo, recebiam já a consolação do além-túmulo: o Espírito de Allan Kardec veio dizer-lhes das suas comoções, suas primeiras impressões, e quais, dentre aqueles que o tinham precedido no além-túmulo, tinham vindo ajudar-lhe a alma a desligar-se da matéria, Se o "estilo é o homem", os que conheceram Allan Kardec em vida não podem deixar de se emocionarem com a autenticidade dessa comunicação espírita.
A morte de Allan Kardec é notável por estranha coincidência. A Sociedade que esse grande propagador do Espiritismo fundara vinha de desaparecer. Abandonado o local, levados os móveis, nada mais ficava de um passado que havia de renascer sobre novas bases. No fim da última sessão, o presidente apresentara suas despedidas; cumprida sua missão, afastava-se da luta diária, para se entregar completamente ao estudo da filosofia espiritualista. Outros, mais jovens --- intrépidos --- deveriam prosseguir a obra e, fortes por sua virilidade, impor a verdade por sua convicção.
Para que relatar os pormenores de sua morte? Que importa a maneira pela qual se quebrou o instrumento, e por que dedicar uma linha a esses fragmentos de ora em diante mergulhados no turbilhão imenso das moléculas? Allan Kardec desencarnou na sua hora própria. Findou-se com ele o prólogo de uma religião vivaz, que, irradiando todos os dias, breve terá iluminado toda a humanidade. Ninguém mais próprio do que ele para levar a bom termo essa obra de difusão, à qual era preciso sacrificar as longas vigílias que alimentam o espírito, a paciência que educa com o passar do tempo a abnegação que afronta a estultícia do presente, para enxergar apenas a irradiação do futuro.
Allan Kardec terá, com suas obras, firmado o dogma pressentido pelas mais velhas sociedades. Seu nome, estimado como de homem de bem, há muito se encontra vulgarizado pelos que crêem e pelos que temem. É difícil praticar o bem sem chocar interesses arraigados. O Espiritismo destrói muitos abusos, reanima muitas consciências enfermas, dando-lhes a certeza da prova e a consolação do futuro.
Os espíritas pranteiam hoje o amigo que os abandona, porque nosso entendimento, por assim dizer, material, não se pode curvar a essa idéia de transição; pago, contudo, o primeiro tributo a essa inferioridade do nosso organismo, o pensador ergue a cabeça e, por entre esse mundo invisível, cuja existência ele pressente além do túmulo, estende a mão ao amigo, que deixou de existir, seguro de que seu Espírito nos protege sempre.
O presidente da Sociedade Espírita de Paris está morto; contudo, o número de adeptos cresce diariamente, e os corajosos, que, por respeito ao Mestre, se deixavam estar em segundo plano, não temerão evidenciarem-se, para o bem da grande causa.
Esta morte, que passará indiferente aos olhos do vulgo, não deixa de ser, apesar disso, um grande acontecimento para a Humanidade. Não é apenas o sepulcro de um homem, é a pedra tumular enchendo esse imenso vazio que o materialismo havia cavado aos nossos pés e sobre o qual o Espiritismo espalha as flores da esperança.
Um ponto a respeito do qual não chamei a vossa atenção, porém ao qual sou obrigado a assinalar, é a caridade verdadeiramente cristã de Allan Kardec; pode-se dizer dele que a mão esquerda ignorou sempre o bem que fazia a direita, e que esta, ainda, menos conheceu os botes que sobre a outra atiravam aqueles para os quais o reconhecimento é fardo excessivamente pesado, Cartas anônimas, insultos, traições, difamações sistemáticas, nada se poupou a esse intimorato lutador, a essa alma excelsa e varonil que adentrou integralmente a imortalidade.
Os restos mortais de Allan Kardec repousam no Père Lachaise, em Paris, debaixo de modesta lápide erigida pela piedade dos seus discípulos; nesse local é que se reúnem todos os anos, desde 1869, os adeptos que guardaram fidelidade à memória do Mestre e trazem preciosamente no coração o culto da saudade.
E visto como análogo sentido hoje nos reúne, repitamos bem alto, minhas senhoras, meus senhores:
Honra!
Honra e glória a Allan Kardec!
HENRI SAUSSE