XVIII - Projeto de comunidades monásticas capazes de conservar a cultura e favorecer um renascimento

Júlio César, Cícero, Deodoro Sículo, Pappo e Marziano Capella não se preocuparam em redigir projetos para a instituição das universidades de Oxford e de Cambridge, nem das de Bolonha e Roma - que deveriam ser fundadas muitos séculos após a sua morte. Essas universidades exerceram uma notável influência sobre o desenvolvimento da história cultural do século XII ao XX - ou seja, com períodos alternados - e sua fundação deve, seguramente, ser considerada um fato positivo. Seria absurdo censurar os artistas, os acadêmicos e os homens cultos da antiguidade por não haverem previsto e preparado a fundação das universidades.

Para usar uma metáfora escatológica, poderíamos dizer que Júlio César, Cícero e os outros salvaram a alma porque não podiam prever que "a Idade Média viria" e não podiam, sequer, imaginar as condições em que a instituição das universidades seria espontânea e significativa.

Se, em nossos tempos, prevemos, pelo contrário, que uma nova época medieval se está avizinhando, não poderíamos salvar a alma sem prever, empregando o máximo de nossa capacidade, quais procedimentos poderiam ser adotados e quais estruturas poderiam ser criadas para salvar aquilo que reputamos de maior importância em nossa civilização e para tornar mais fácil o reflorescimento de uma cultura certamente diversa da atual, mas que preserve, ao menos, alguns traços característicos desta - possivelmente, os melhores. Deveríamos sentir tanto mais esta responsabilidade quanto mais firmemente acreditamos na fatalidade do processo que parece conduzir as congestionadas condições atuais dos grupos humanos mais adiantados a condições instáveis e, portanto, a um abalo, a um knock-out. Alias, as nossas previsões - e as demais que vêm sendo feitas, sem exceção - são, sempre, inclinadas à incerteza e se deve, pois, levar também em consideração a hipótese de que os países mais adiantados não se desenvolveram inteiramente, até aqui, em virtude das condições instáveis e não sofrem, por isto, qualquer crise grave que leve a um próximo período medieval. Essa hipótese otimista é pouco provável, porque requereria uma nítida inversão de muitas tendências já comuns e imperantes no modo como são administrados o comércio, as indústrias, as escolas, as cidades, as nações e todo e qualquer grupo de homens, como quer que seja definido.

Parece, portanto, pouco provável que as coisas caminhem bem. Se, porém, malgrado essa probabilidade mínima, as condições que havíamos chamado de medievais não se verificarem, toda a organização projetada para entrar em funcionamento durante a futura Idade Média assumiria, por muito tempo, um aspecto ridículo. O ridículo não deveria ser maior do que aquele de que se revestem muitas forças armadas em tempos de paz prolongada e, lamentavelmente, às vezes também em tempo de guerra. Parece, entretanto, que os militares são treinados para não se preocuparem se aparentam ser ridículos ou são selecionados entre os indivíduos privados do senso do ridículo.

Seria oportuno, contudo, planejar grupos encarregados de conservar certos dados e certas formas de cultura e de favorecer, no justo momento, um novo renascimento, de modo que possam cumprir funções úteis, mesmo afastada a crise apocaliptica.

Poder-se-ia sustentar que as organizações que satisfazem esses requisitos - ou seja, que desenvolvem uma útil função cultural e estão preparadas para resistir a qualquer catástrofe e conservar o melhor da cultura contemporânea - já existem: tratar-se-ia das atuais universidades, dos centros acadêmicos, dos institutos de pesquisas. E aquele que sustentasse isso, encontraria justificativas tranqüilizadoras para tudo: se as diretrizes, as tendências e as organizações culturais atuais são as melhores possíveis - e é claro que o são, apesar de já as havermos modificado -, é bom que todos continuem fazendo o que fazem agora e obterão resultados positivos, quer prossiga uma situação geral, considerada de modo superficial como normal, quer surjam situações involutivas do tipo medieval. Deveria ser claro quão ilusório é esse ponto de vista a todo aquele que, nota a generalidade da crise da academia e da escola e a quem reflita que mesmo as impropriedades dessas são uma das causas remotas da crise futura do sistema que podemos, desde agora, antecipar.

Os grupos em projeto - conservadores da cultura e catalisadores de um renascimento futuro - deveriam ter algumas características em comum com as fraternidades monásticas, pela única razão de que deveriam diferenciar-se profundamente em sua constituição, em seu funcionamento e nas suas finalidades, dos modos, das tarefas e da desordem uniforme da sociedade que os cerca; e essa diferenciação seria, naturalmente, melhor garantida por um isolamento monástico. Não vale a pena, porém, estabelecer um paralelo mais preciso entre esses novos grupos e as comunidades monásticas da passada Idade Média. É comum a noção de que eram conservados nos monastérios medievais os clássicos, a cultura greco-romana e a língua latina não vulgarizada. De certa forma, isto é, seguramente, real; pode-se, no entanto, objetar que muitos textos clássicos interessantes estiveram perdidos por terem sido raspados dos pergaminhos e substituídos por salmos e hinos sacros de interesse muito menor. Poder-se-ia, ainda, sustentar que Tomás d'Aquino não prestou um bom serviço a Aristóteles: mas isto é o ponto essencial. Do monacato medieval tomarei por empréstimo, pois, apenas o nome, mas não sustentarei que os nomes são conseqüência das coisas.

Os novos monges deveriam conservar informações e recordar a maneira como se fazem certas coisas, se aceitamos - como uma crença justa - que o conceito de cultura implica tanto no conhecimento quanto no saber fazer.

O objetivo primordial da conservação dos dados pode ser o de transmitir informações sobre certas situações e certos eventos aos historiadores futuros. Parece que estão sendo preparadas, nos Estados Unidos, cápsulas de tempo (time capsules) totalmente impermeáveis à ação do calor e dos agentes externos, contendo textos, ilustrações e amostras de artefatos e manufaturados, destinados a serem descobertos daqui a alguns milhares de anos.

A preparação dessas cápsulas de tempo é, no entanto, supérflua e redundante, uma vez que a conservação de dados destinados aos historiadores futuros já está preparada, com um alto coeficiente de segurança nas crônicas e nas enciclopédias que estão sendo elaboradas em todas as nações adiantadas, imprimindo-se um número muito elevado de cópias. Somente o fato de as tiragens dessas obras superarem a dezenas de milhares de cópias, atingindo, por vezes, a centenas de milhares, assegura que ao menos algumas permanecerão íntegras. Seria, pois, injustificada a preocupação de selecionar as melhores obras e conservá-las em local mais seguro e protegido. Poderia, unicamente, valer a pena redigir, ad hoc, relatórios especiais, contendo informações que caíram, de tal forma, no domínio comum que a ninguém ocorreria registrá-las na enciclopédia normal, tendo em vista que, dentro de algumas dezenas de anos, tais dados poderão ser perdidos, sendo impossível reconstituí-los numa situação ambiental totalmente mudada. Não é fácil, porém, imaginar que dados seriam efetivamente negligenciados pelos periódicos e livros contemporâneos, que, certamente, não excluem fatos irrelevantes.

Seria nitidamente mais interessante o outro objetivo da conservação de informações, qual seja o de manter disponíveis noções, teorias e processos de modo que possam ser utilizados para reconstituir formas de civilização e de vida gregária, destruídas ou deterioradas, para iniciar o renascimento. É oportuno, neste ponto, que eu dê uma definição explícita de renascimento - como já dei, anteriormente, de Idade Média.

Defino, então, renascimento como uma situação de bem-estar renascido, ou novo aumento de produtividade, a tal nível que permita a muitas pessoas dedicar seu tempo, inteiramente ou em grande parte, a estudar, a aprender, a procurar a verdade, não mais sendo forçadas a uma contínua atividade utilitária visando a assegurar-lhes sustento, refúgio e sobrevivência.

O renascimento poderá ser constituído, simplesmente, por urna elevada porcentagem de pessoas cultas de um determinado tipo e teria sentido procurar definir suas características: a antecipação do futuro medieval próximo é, - já, impregnada de incertezas e imprecisões, como o é, com maior razão, qualquer outra antecipação de fato que se verifique após o período medieval. Não se pode, sequer, demonstrar formalmente que o renascimento seja preferível ao período medieval, nem que esse seja em absoluto desejável. A situação de renascimento é um fim que deve ser perseguido por quem o julga desejável e isto é quase tudo o que se pode dizer a propósito, como, de resto, com referência a qualquer fim ao qual se possa um homem propor. Não há defesa, por exemplo, contra o argumento banal daqueles que sustentam não nos devermos preocupar em tornar o futuro melhor para os posteriores, já que estes, certamente, nada farão por nós.

Na futura Idade Média, os homens viverão duramente e trabalharão a maior parte de seu tempo, para executar as tarefas primordiais. Alguns - pouquíssimos, talvez um entre dez mil - ocuparão posições privilegiadas e seu trabalho não consistirá em combater pessoalmente os adversários, ou em cultivar a terra, nem em construir abrigos com as próprias mãos, mas consistirá em intrigas e tramas ainda mais violentas e duras do que aquelas que hoje conhecemos para manter os próprios privilégios e aumentar o próprio poder sobre os demais. Quase ninguém estará livre de encargos imediatos e poderá pensar melhor em problemas abstratos e genéricos.

Os grupos conservadores da cultura e preparadores; do renascimento deverão gozar de uma notável liberdade em relação às tarefas imediatas, que, contrariamente, não exaurirão a atividade, e isso somente se pode obter com uma dotação inicial feita em tempo hábil - ou seja, antes do começo da futura Idade Média - aos projetistas dos grupos de sobrevivência. A dotação inicial não poderá ser em dinheiro, uma vez que, dentre os vários abalos, o da moeda será, presumivelmente, um dos primeiros. Dever-se-á tratar, pelo contrário, duma dotação de meios de trabalho, utensilios, aparelhagem, conjuntos eletrogêneos, bens materiais não perecíveis e, sobretudo, desenvolvidos pela comunidade monástica, e mercadorias, passíveis de serem trocadas para adquirir gêneros alimentícios e outros objetos de primeira necessidade tais como sal, açúcar, álcool, brocas, chapas, parafusos de aço inoxidável, cabos de cobre, munições para armas ligeiras.

Os grupos de sobrevivência encontrar-se-ão competindo duramente com toda espécie de outras pessoas sobreviventes, casualmente agrupadas, e, por serem nitidamente favorecidos, deverão dispor de uma dotação inicial muito grande: talvez de tão significativa importância que somente certos governos poderão levá-la a cabo. A intervenção governamental poderia resolver, pelo menos, o problema da disponibilidade financeira, mas, poderia originar numerosos tipos de problemas, em virtude de sua lentidão, de seu baixo rendimento da influência por parte dos interesses preestabelecidos das instituições atuais e da inevitável - e presentemente também auspiciosa - publicidade, à qual estaria sujeito. Um exemplo significativo disto foi fornecido, há alguns anos, pela tentativa dos círculos governamentais britânicos de projetar uma rede de refúgios antiatômicos e uma completa organização apta a garantir a sobrevivência do mecanismo estatal e, pois, a incolumidade, a segurança e o sustento de algumas pessoas-chave, em caso de ataque às Ilhas Britânicas, com explosivos nucleares, por parte de algum inimigo. O plano previa que poderiam ser colocados rapidamente, a salvo, a Família Real, o Governo, alguns altos funcionários e tecnocratas, certos oficiais de alta patente das forças armadas e uma corte de arquivistas, técnicos, executivos e guarda-costas. Parece, ainda, que para assegurar a eficiência de muitas dessas pessoas durante o estado de emergência tivesse, também, sido previsto colocar-se a salvo seus familiares, de modo que o chefe da família pudesse dedicar-se ao seu trabalho sem sofrer tensões e preocupações adicionais. A preparação desse procedimento de emergência teve, no entanto, de ser interrompida - ou, talvez, conduzida com maior discrição - em virtude, do fato de que o movimento em prol do desarmamento nuclear tomou conhecimento do plano e começou a debater publicamente a moralidade, da seleção daqueles que seriam destinados a sobreviver e os critérios pelos quais a seleção seria efetuada.

Não sei se os critérios utilizados pelos planejadores da sobrevivência do Governo seriam particularmente criticáveis. Não resta dúvida, no entanto, de que seria impossível encontrar critérios contra os quais não se pudessem levantar objeções. Pondo de parte o julgamento do mérito sobre a composição e a estrutura dos grupos de sobrevivência que deveria ser emitido por um especialista -, e pondo de parte o fato de que não existem especialistas nesse campo, é evidente que o imediato vested interest de todo indivíduo em sobreviver e, conseqüentemente, de vir a participar de um dos grupos, é tão intenso que qualquer decisão sobre as pessoas seria, automaticamente, encarada com legitima suspeita.

O problema do tipo de cultura a ser conservada, dos meios como conservá-la e das pessoas incumbidas de mantê-la é, por certo, irresolvível em base democrática e representativa. Poder-se-ia adotar, nesse caso, a solução de se confiar na livre competição, esperando que essa produza a conservação de tipos de informações e a sobrevivência dos grupos conservadores com características diversas e, eventualmente, opostas.

As comunidades monásticas de sobrevivência ficarão aquarteladas em lugares altos, já que, numa época insegura, são mais facilmente defendidos, permitindo ver-se, de longe, antecipadamente, a aproximação de forças hostis e possibilitando tradicionais contra-ataques efetuados com a ajuda da força da gravidade, fazendo, simplesmente, rolar, do alto, pedras e rochas contra os agressores. Por outro lado, os cumes das colinas estão, automaticamente, protegidos contra as inundações e, muito provavelmente, deixarão para trás as grandes massas de homens em deslocamento ou em migração, que se dirigem, espontaneamente, rumo a presas mais fáceis, em lugar de tentar uma conquista penosa e de êxito duvidoso.

A dotação inicial e a predisposição de enfrentar as rápidas revoluções do ambiente constituirão uma grande vantagem, que poderia ser desfrutada pelas comunidades de sobrevivência com objetivos diversos dos institucionais. Os chefes das comunidades, com efeito, serão submetidos a uma tentação contínua de mergulhar ativamente na luta e de atingir unia posição de primazia, ainda que, eventualmente, numa área geográfica restrita e isolada do resto do mundo. Semelhante atividade deveria, por certo, ser evitada, visto que seria muito diferente da institucional - de, primeiramente, conservar e depois, atuar como catalisador ou fator desencadeador de um muito vasto movimento de renascimento. Todavia, nenhum projetista saberia predeterminar todas as possíveis mutações e variações que sofrerão as comunidades de sobrevivência no decurso de sua vida, provavelmente longa. Será oportuno, conseqüentemente, confiar na estatística - ou melhor, nas leis que governam os grandes números - e começar a fundar o maior número possível de comunidades de sobrevivência, aceitando que algumas se desagreguem e desapareçam, que outras esqueçam a finalidade para a qual foram fundadas e se transformem em baronatos ou centros de banditismo e que, enfim, ao menos, poucos, correspondam efetivamente às expectativas - ou seja, conservem as estruturas e informações merecedoras de serem preservadas e ajam positivamente para o renascimento futuro.

As comunidades pertencentes a essa última categoria poderiam ser forçadas a viver, por um tempo bastante longo, na clandestinidade, sem deixar vir à superfície manifestação alguma de sua verdadeira essência. Isto poderia verificar-se, por exemplo, de modo particularmente dramático se afluíssem em torno da comunidade populações nômades ou invasores provenientes de terras longínquas. As informações e a cultura conservadas correriam, então, o risco de cristalizar-se e de perder toda a vitalidade, transformando-se, gradativamente, em fórmulas vazias, de significado continuamente desacreditado. Muito mais tarde, poderiam surgir homens mais enérgicos e mais bem dotados do que seus antecessores, os quais procurariam reconstruir os verdadeiros significados e as funções reais das informações registradas nos textos e dos processos transmitidos oral e operacionalmente.

Quanto a este ponto, existirá o risco de que a reconstrução seja, com efeito, uma adulteração da cultura originaria e sirva somente para fazer nascer uma cópia infiel e artificial da civilização evoluída de nossos dias. As reconstruções, fiéis ou não, parecem destinadas a ter vida breve: assim o foi a restauração da religião romana feita pelo Imperador Juliano, assim o foi com a do Segundo Império francês. Seria, portanto, de escasso interesse fazer elucubrações a respeito da maneira pela qual os homens do futuro poderiam inventar um modelo mental ou construir um modelo operacional de um mundo antigo em tudo diverso daquele real.

O verdadeiro problema dos homens do futuro será o de extrair de um acúmulo de dados irrelevantes as informações úteis a cada um de seus objetivos. A descoberta de informações acumuladas no passado não apresenta dificuldades muito menos graves do que a descoberta das informações que vêm sendo continuamente geradas e impressas em publicações por demais numerosas para serem seguidas. Após o knock-out, muitas verdades e muitas descobertas serão inventadas pela segunda vez, por causa da impossibilidade de encontrar, no justo momento, a documentação das invenções precedentes. Este fenômeno, de resto, está se verificando hodiernamente, antes do knock-out, de modo mais maciço do que se possa imaginar. Numerosos jovens cientistas e técnicos limitam a própria documentação aos livros e às revistas publicadas nos últimos dez anos, por julgarem ultrapassadas as obras anteriores. O início de uma atividade de crivo de textos antigos e antiquados poderia ser um tirocínio útil, que certos grupos de sobrevivência poderiam escolher como uma de suas finalidades a curto prazo a ser executada antes do knock-out.

Os novos monastérios não poderiam funcionar do modo projetado, caso se limitassem a conservar fórmulas fixas ou a assegurar a integridade física dos textos registrados. Um sacerdócio que considerasse puramente como utensílios sacros os livros, os microfilmes ou as fitas magnéticas que têm em consignação poderia cumprir função útil apenas aos arqueólogos futuros. Uma eficiente continuidade cultural poderá ser assegurada somente se - numa seqüência ininterrupta de indivíduos - se reproduzirem costumes, capacidade, domínio de noções, interesses e tradições construtivas, dificilmente definíveis, por outro lado, de modo formal.

A vitalidade e eficiência dos grupos de sobrevivência poderão ser confiadas, simplesmente, aos seus próprios estatutos, ou seja, a uma série de regras estabelecidas, inicialmente, para definir as atribuições e as metas da organização, os meios de seleção de novos adeptos e o processo para a delegação e a transmissão da autoridade, a estrutura do grupo, os deveres e os direitos de seus membros.

Poder-se-á, alternativamente, incluir uma seqüência de controles automáticos na estrutura dos grupos, confiando-se aos monastérios não o encargo explícito de preservar a cultura e o know-how, mas outros fins, que sejam impossíveis de atingir se não se dispõe de cultura e know-how. O modo mais severo e mais paternalista de implantar uma estrutura desse tipo seria o de dividir a dotação de meios, destinada a cada um dos grupos, em diversas porções ocultas e inacessíveis a quem não disponha de certos instrumentos técnicos em bom estado de conservação ou a quem não saiba decifrar certas chaves criptográficas baseadas em teorias matemáticas, físicas e químicas.

O escalonamento, no tempo, das porções de dotação a serem descobertas poderia ser obtido liberando-se, por meios automáticos, em determinados intervalos de tempos sucessivas informações em código, que forneçam o ponto de partida para a determinação de cada esconderijo. Este modo de incentivar os grupos de sobrevivência com prêmios in natura - semelhantemente a uma caça ao tesouro - seria, entretanto, muito artificial e dependeria de um preparo de confiança não absoluta; tal preparação, além disso, deveria ser notoriamente velada, de forma a dissuadir os pesquisadores futuros de qualquer tentativa de violação com o intuito de se apossar, antecipadamente, das dotações programadas para épocas mais distantes, apressando o andamento do sistema e tornando inútil as providências previstas no projeto para prolongar a duração do tempo em que certos conhecimentos venham a ser transmitidos, para assegurarem a obtenção de benefícios futuros.

Seria preciso concluir, então, que é preferível motivar de modo mais desinteressado os grupos de sobrevivência e deixar livre o arbítrio de como utilizar as dotações iniciais espontâneas. O surgimento de fatos novos e imprevisíveis deveria ser enfrentado por cada um dos grupos com liberdade de escolha, permitindo-lhes combater ou favorecer qualquer nova tendência e qualquer nova força que se apresente em cena.

A antecipação de, eventos futuros que expus pode ser considerada simplesmente um esforço cognoscitivo, com intenção de mostrar aquilo que podemos esperar para as próximas décadas. Claro está, entretanto, que tendo tentado indicar, também, quais ações poderiam ser empreendidas para evitar o knock-out ou para facilitar um novo renascimento após a futura Idade Média, meu intento não é apenas especulativo, mas, igualmente, construtivo.

Qualquer tentativa de realização se deve mais à individualidade dos homens que dela participam do que aos trechos de documentos que especificam objetivos e metas. E deverão ser selecionadas, através da utilização de critérios novos e irreverentes, as pessoas às quais se confiará a responsabilidade de imaginar as providências antimedievais de planejar monastérios underground, grupos clandestinos e maquis, incumbidos de continuar a existir e de influir sobre o renascimento seguinte, caso se decida que qualquer providência seja ineficaz. Serão excluídos, por exemplo, os donos da verdade absoluta, os falsos inovadores, os políticos progressistas e ineficientes, os profetas falsos e vagos, os cibernéticos. Serão incluídos certos desenvoltos administradores da pesquisa científica, certos empresários industriais, alguns raros economistas e, psicólogos, críticos profissionais da ciência e da sociedade, agricultores, pecuaristas, mineiros, químicos.

A previsão do período medieval iminente pode ter profundas implicações no futuro de cada um de nós. É natural indagar-se, daqui em diante, como as nossas atividades, os nossos princípios e os nossos projetos pessoais deveriam ser modificados, levando-se em conta essa antecipação. Quando deveremos começar a preocupar-nos com a construção de um bunker unifamiliar, em lugar de com o lugar onde passar as férias?

As páginas precedentes não pretenderam dar a esta pergunta, ou a outras semelhantes, uma melhor resposta do que aquela que os livros sobre a economia contemporânea e suas presumíveis tendências possam oferecer a quem deseja especular na bolsa.

Ninguém pode dizer ao especulador calouro quanto poderá lucrar. Contudo, muitos são os que discorrem a respeito dos fins e pretendem demonstrar a existência de objetivos supremos que deverão ser almejados por todos. São, também, muitos os que se desiludem e perdem a fé que antes depositavam na eficácia de certos fins genéricos, quer quando os buscam e os vêem distantes, quer após tê-los atingido. E para essas pessoas não há solução.

Somente quem houver seguido, com êxito, um tirocínio de higiene mental conseguirá definir um objetivo estavelmente desejável e poderá atingi-lo unicamente quem souber governar os meios necessários e adaptar suas próprias ações às mutações imprevisíveis da realidade. Apesar de ser insensato descuidar da preponderância do acaso na decisão da sorte dos homens e dos destinos dos impérios; para chegar à sobrevivência senão à superioridade, não saberíamos indicar outro caminho que não seja o da preparação: observar o funcionamento do mundo físico e da sociedade, melhorar e diferenciar os próprios serviços.

Os agregados humanos degradam-se, as decisões dos potentados impelem-nos em direção à instabilidade e não faria sentido a tentativa de inverter esta tendência com uma simples notificação de revolta à sociedade e aos governos. Somente as exortações dos indivíduos podem acarretar conseqüências diretas e definidas. A inegável existência dos processos de aprendizagem dos indivíduos é suficiente para demonstrar que o aumento da quantidade de informações disponíveis pode - pelo menos em certos casos - garantir a salvação.