XVI - Evolução das formas de vida associativa anteriormente ao knock-out e na próxima Idade Média

Quando a Organization for Economic Cooperation and Development; (OECD) recomenda a todos, ou a alguns, dos governos-membros a adoção de medidas enérgicas e concretas para remediar a situação insatisfatória, no campo da economia, da tecnologia ou da educação, raramente as sugestões são muito prontamente acolhidas: em alguns casos, em que se teme que as medidas sugeridas possam ser particularmente impopulares, a OECD vê-se quase forçada a usar de muita diplomacia e a expurgar os seus documentos, censurando as palavras perigosas ou ofensivas, ou melhor, reduzindo as principais idéias a uma forma muito genérica. Verificou-se uma situação dessas em 1970, quando a OECD sugeria aos governos europeus - com prudentíssimos circunlóquios - que a única solução para as tristes condições econômicas de seus países era o aumento do desemprego.

A eficácia da solução da OECD) ficou por demonstrar e, talvez, não possa ser demonstrada como autorizadamente o afirmara Lord Beveridge - mas a circunstância que me interessa destacar é a de que o relatório da CECI) não foi Publicado antes de que os trechos relativos ao desemprego fossem censurados com muito tato, sem que sequer uma discussão a respeito fosse tentada.

A UNESCO patrocina muitas iniciativas anódinas, numerosas delas definidas de modo bastante vago, em textos que nos trazem à mente o palavrório do Reader's Digest.

A Organização das Nações Unidas, em caso de dificuldades graves, retira as suas tropas - como sucedeu pouco antes da guerra dos seis dias - e deixa que os conflitos armados, prestes a começar ou já começados, prossigam sem impedimentos.

Os homens têm necessidade de ajudar-se mutuamente e de cooperar: não parece que possam ser essas organizações internacionais - definidas por meio de uma sequência, mais ou menos longa, de letras minúsculas - que venham a satisfazer tal necessidade.

Os poderes públicos - os governos, as administrações locais, as entidades - há tempo que, só excepcionalmente, não mais cumprem suas próprias finalidades institucionais. Obviamente, não posso negar que ainda existem, presentemente, muitas organizações e sistemas funcionando bastante bem, mas é sempre maior a lista de graves problemas, cuja solução ao invés de avizinhar-se, parece cada dia mais longínqua.

A situação financeira e econômica da maior parte dos países ocidentais - balanço dos pagamentos, inflação, desemprego, produtividade - piora, sem que os organismos responsáveis pelo seu controle possam fazer algo para inverter a tendência. Na América, os graves problemas da violência individual e de grupo não encontram solução e há a constante ameaça dos problemas de poluição e eliminação dos refugos urbanos. Em quase todos os países europeus, a carência de serviços municipais é muito mais acentuada do que na América (falta de médicos, de hotéis, de escolas, de estradas, de equipamento eletrônico, de manutenção).

As tendências de desenvolvimento da situação parecem indicar que, dentro em breve, existirá uma clara e indiscutível conveniência econômica de a iniciativa privada empreender, às suas expensas, as obras públicas. os recursos que os particulares pagam, através de taxas e impostos, não são suficientes, ou bem empregados, para fornecer as obras e os serviços desejáveis pelos que pagam tais tributos. Isto é o que sucede na Europa, onde não foi ainda introduzido o sistema norte-americano de votar bonds - ou destinação de recursos municipais, baseados na aprovação de futuros impostos municipais autorizados pelo resultado positivo da mesma votação pública. Será, pois, inevitável o surgimento de novas organizações comunitárias que substituam os poderes públicos deficientes e proporcionem os serviços dos quais ninguém se ocupa em assegurar.

Os vigilantes são grupos de cidadãos armados que mantém a ordem pública nas cidades do interior dos Estados Unidos, especialmente com o patrulhamento noturno e um serviço de emergência para os casos de tumultos e agitações e que têm, por vezes, tendências extremistas de direita. Não interessa, aqui, um juizo político ou moral sobre os vigilantes; merece, antes, ser assinalado que as pessoas pertencentes a esses grupos não estarão, por certo, dispostas a pagar elevadas taxas ou impostos, destinados a financiar corporações de policia ineficientes, ou supostamente tidas como tal - cujos serviços eles próprios substituem com esforço e ônus pessoais.

Analogamente, os grupos de cidadãos europeus que restauram, às suas próprias expensas, a pavimentação da rua em que habitam, que se organizam para despejar o lixo no rio mais próximo, com uma camioneta, que tornam a si os encargos de executar uma obra pública qualquer, encontrando um proveito compensador na utilidade que oferecem aos membros do grupo e ofertando seu uso a pessoas - muito mais numerosas - não pertencentes ao grupo, recusarão, cedo ou tarde, pagar taxas teoricamente destinadas a comprar quaisquer desses mesmos serviços. A recusa à tributação é o primeiro passo em direção a independência política dos governos centrais e das antigas autoridades locais para não falar da independência das organizações internacionais, que não parecem destinadas a ter uma autoridade sensível. Inicialmente, essas novas entidades comunitárias terão, somente, balanças especiais destinadas à execução de determinadas obras una tantum: posteriormente, sua constituição se tornará estável e, por certo tempo, sua eficiência se manterá em nível elevado, por causa de suas origens, muito realisticamente orientadas em direção à conquista, a curto prazo, de objetivos concretos.

Pode-se presumir que, nos próximos anos as "novas comunidades" - ou como quer que venham a ser chamados as novos esforços cooperativos privadas - começarão a surgir, com características semelhantes, em diversos países. A semelhança dessas formas de vida associativa será devida, principalmente, à convergência, mais do que à difusão. As novas cooperativas surgirão espontaneamente - provocada a sua existência pela situação uniformemente insatisfatória dos poderes deficientes, decadentes e degradados.

As novas comunidades poderiam conseguir restaurar, de muitas maneiras, a eficiência funcional, administrativa e de planejamento. Poderiam pressionar psicologicamente ou, também, usar de violência para induzir os organismos existentes a um melhor funcionamento. Poderiam organizar, em grande escala, um movimento de time-sharing - ou utilização dos recursos disponíveis, de forma mínima, pelos diversos usuários, sucessiva e racionalmente.

Voltemos a examinar, ligeiramente, alguns significados da atual explosão demográfica e considerando algumas cifras relativas aos Estados Unidos. De acordo com os dados fornecidos pelo Departamento de Censo, tendo em vista uma corrente migratória anual, para os Estados Unidos, de 400 mil pessoas, a população norte-americana, no ano 2000, poderá, no máximo, ser de 320 milhões de habitantes - o que, em média, implicaria 3,1 filhos para cada mulher e, no minimo, de 240 milhões, o que implicaria a abolição da imigração em 2,11 crianças para cada mulher, ou seja, um número de nascimentos apenas suficiente para compensar as mortes. Suponhamos que se verifique algo, nesse ínterim, e que em 30 anos a população dos USA cresça dos 200 milhões atuais para 300 milhões: nesse caso, analogamente ao modo de vida, todas as estruturas civis americanas (habitação, transportes, sistemas de produção de energia, infra-estruturas, comunicações, administração, assistência médica, sistemas de distribuição, escolas, etc.) deverão, igualmente, aumentar em 50%.

Isto significa construir, a cada 30 dias, nos próximos 30 anos, o equivalente a nova e completa cidade de 280 mil habitantes. Essa atribuição parece titânica. Resolver-se-ia boa parte do problema se se recorresse ao time-sharing, como por exemplo, estabelecendo-se os horários de trabalhos no decorrer do dia, os dias de repouso no decorrer da semana e os períodos de férias no decorrer do ano. Com tais providências racionais, o congestionamento poderia diminuir nos transportes, nas comunicações, no uso da energia - drasticamente: de 20 ou 30%. Outros sistemas de time-sharing foram sugeridos e - apesar de poderem parecer ainda menos atraentes e mais impopulares do que os já citados teriam, também, possibilidade de proporcionar notáveis vantagens. A mesma habitação poderia ser usada, em diferentes períodos, por pessoas diversas, umas ocupadas no trabalho diurno e as outras nos turnos da noite.

Não se faz necessário continuar a descrever este elenco de medidas para se convencer de que o incômodo acarretado por tais providências racionais e coletivas é tão acentuado que os poderes públicos não se disporão, por muito tempo, a tentar a sua adoção obrigatória e que mesmo os esforços comunitários a esse respeito poderão obter sucessos apenas marginais. (A única forma de time-sharing que parece popular é o adultério, o qual, no entanto, não é apto para resolver os grandes problemas sistêmicos.)

O eventual surgimento das novas comunidades poderá, pois, apenas retardar o alcance das graves condições de instabilidade generalizada e a verificação do K.O., mas não alterará muito a tendência geral. Se as novas comunidades começarem a existir anteriormente ao K.O., terão suficiente vitalidade para continuar existindo no futuro medieval próximo, e é de se pensar que poderão, também, conservar informações, tradições e motivações, sobre as quais, decorrido um tempo mais ou menos longo, se articularia o renascimento seguinte.

Certamente, numa época medieval futura, as livres associações não terão vida fácil. O rápido retorno a uma penúria generalizada será acompanhado de violência e crueldade de formas no momento esquecidas. A força das leis será restrita ou nula, quer pela degradação, quer pelas dificuldades dos meios de comunicações e transportes. A autoridade somente poderá ser delegada aos poderes locais, que a manterão exclusivamente pela força - e que, através dessa mesma força, poderão opor resistência às opiniões daqueles que lhes deleguem a autoridade. Nessa situação o arbítrio se tornará a regra.

O direito de propriedade sofrerá modificações profundas e rápidas. Os cadastros - já, agora, cronicamente errôneos e desatualizados - perderão todo significado, inicialmente em virtude do fato de que a maioria dos proprietários morrerá sem herdeiros e, portanto, por causa de um acentuado desequilíbrio entre o escassíssimo valor dos bens cadastrados e o elevado custo em que implicaria a continuação de um sistema de registro trabalhoso e antiquado. O usucapião virá a ser o modo mais freqüente de aquisição da propriedade, que não mais requererá dez ou vinte anos para se tornar operante, mas, somente, poucos meses ou semanas.

A predominância da posse, sobre todas as outras considerações nas questões relativas à propriedade dos imóveis, tornará mais desejáveis aqueles que se prestam facilmente a serem defendidos contra os que tentem conquistá-los à força. Serão particularmente aptos os edifícios ou os terrenos cercados com muros de imensa espessura, uma vez que as armas empregadas serão convencionais, e, provavelmente, leves. As moradias tomarão o aspecto de castelos ou fortalezas, habitadas por cortes armadas e hóspedes dependentes (agregados), clientes e associados. O assédio poderá voltar a ser uma tática significativa.

A disponibilidade das modernas armas de fogo não tornará inútil a força física, necessária nos combates corpo a corpo, quer para resolver as freqüentes situações de banal emergência, causadas pela falta dos meios mecânicos e pela necessidade de remover obstáculos naturais ou colocados por antagonistas e inimigos.

Pode-se imaginar que permaneçam por longo tempo as unidades militares que, ao momento do K.O., funcionavam disciplinadamente e eram bem munidas e defendidas - mas a probabilidade dessa permanência é mínima. Se, de fato, a tropa se encontrar próxima de lugares habitados e civilizados, o surgimento do KO. induzirá todos os militares a abandonar os quartéis e retornar a casa. Se, ao contrário, a unidade se encontrar em locais inacessíveis e remotos, dos quais não se volta facilmente, permanecerá compacta e talvez mesmo disciplinada, mas, certamente, assim descentralizada não poderá ter contato algum com a maioria dos sobreviventes e sua própria permanência será um fenômeno pouco importante.

Mais importantes do que a forma da arquitetura imposta às estruturas precedentes serão as novas soluções que responderão às necessidades de alojamento, defesa e comércio das cortes armadas ou das raras comunidades livres enclausuradas na férrea realidade duma época violenta como no século XVI foi projetado e difusamente empregado o bastão de ângulo agudo, bem defendido dos tiros da artilharia e capaz de colocar em posição favorável as próprias bocas de fogo. Não serão particularmente significativos os uniformes e as roupas escolhidas pelos homens que assumirão o comando: é sabido que a familiaridade com as armas favorece a ostentação dos sinais característicos - distintivos, penachos, peles, cinturões, túnicas, objetos de ouro e capas. Emergirão estruturas feudais - isto é, do tipo em que a autoridade deriva de delegação superior e pouco após a afirmação do poder delegado por força própria e independente do ato formal com que a sua autoridade fora, inicialmente, estabelecida.

O equilíbrio da autoridade entre os centros afastados e os potentados locais basear-se-á em intrincados e fugazes compromissos. Essas estruturas, só aparentemente novas, reconhecerão abertamente estados de coisas já existentes antes do K.O. e disfarçados superficialmente por vãos formalismos. Exemplos disso não se encontram unicamente nos países orientais, onde os poderes tribais são ocultos por parlamentos formalmente idênticos ao britânico: igualmente, nas melhores democracias o poder real não é sempre detido por aqueles que podem impô-lo com armas, mas, após o K.O., muitas simulações não mais serão necessárias.

Seria fácil tentar um confronto, ou talvez uma identificação, entre as estruturas oligárquicas e feudais que descrevi e as brutais organizações do tipo da Cosa Nostra, da Máfia, da Fibbia calabresa e da Camorra. Essas organizações secretas despertam, hoje, anteriormente ao K.O., a atenção, pela violência que empregam em época não muito violenta, pelo poder indevido que administram segundo particularíssimas regras, não escritas, e não faladas, e pelas relações ocultas e vergonhosas que parecem manter com homens que representam o poder legal e, talvez, façam parte do governo.

Posteriormente ao K.O., tudo será uma máfia: o poder dos governos raramente derivará de eleições livres - fraudulentas ou não - e quase todo centro de poder se originará de compromissos e contatos pessoais.

As relações individuais, as amizades e os conhecimentos, tornar-se-ão ainda mais importantes do que o eram antes do K.O. É uma experiência comum que, durante a carestia, as catástrofes, as desordens, as simples dificuldades de transporte e as guerras, muitos homens se comportam como lobos contra outros seres humanos, prejudicando-os para tirar vantagem, mas têm o hábito de oferecer a prestação de serviços gratuitamente, mesmo a desconhecidos. Algo semelhante sucede, nos dias de hoje, em certos países orientais, nos quais os serviços públicos não existem ou não oferecem a mínima segurança: ninguém confia nos Correios e, por isso, cartas e encomendas são trazidas pelas mãos de conhecidos e viajantes; os hotéis são insuficientes e, deste modo, os viajantes encontram hospitalidade em casas de pessoas de seu conhecimento ou, mesmo, completamente estranhas. De modo similar, durante a blitz, os londrinos cediam suas próprias casas àqueles que haviam ficado sem teto e, pelo menos há poucos anos, na Sardenha, quem se encontrava em um lugar sem casas de pasto e restaurantes não tinha outra escolha além de se fazer convidar para jantar - bem entendido, sem pagar - por uma família importante.

Costumes indiscutíveis de solidariedade e hospitalidade eram muito difundidos na Idade Média de mil anos atrás e foram transmitidos em muitas canções populares que têm por protagonista um peregrino - e são, hoje, difundidos nas comunidades hippies - que vivem permanentemente, por sua própria escolha, em condições muito rudimentares.

É de se prever que as dificuldades materiais, a inesperada dureza das condições de vida e as contrariedades práticas ocuparão tão intensamente o tempo da maioria dos homens que os níveis culturais prevalentes serão necessariamente baixos, e de tal forma que seriam considerados depreciáveis pelos exemplares mais evoluídos da humanidade, que se desenvolveram na época precedente ao K.O. Surge, por isso, espontaneamente, o desejo de se, procurarem eventuais possibilidades de evitar que o futuro medieval próximo venha, efetivamente, a se verificar.

Os índices inadequados da capacidade dirigencial e organizacional disponíveis fazem julgar-se impossível que as atuais tendências de desenvolvimento mudem de modo que condições estáveis venham a, gradualmente, ser alcançadas, sem agitações e. catástrofes. Malgrado esta consideração, e tão grande o desejo de se evitar o retrocesso a uma época férrea, que se impõe a indagação de quais poderiam ser as providências e as iniciativas necessárias à consecução de uma situação final mais aceitável - mesmo que descubramos, depois, não haver ninguém que possa tomar essas iniciativas e procedimentos.