XV - Benefícios a curto prazo e danos secundários a longo prazo das situações involutivas do tipo medieval

Em 1870, o marechal Karl Bernhardt von Moltke obteve uma estrepitosa e definitiva vitória sobre o exército francês. Da parte francesa, aquela vitória não correspondeu a uma simples derrota militar, mas a uma seqüência de abalos e transtornos muito mais profundos. Aquele colapso geral deu-se o nome de débâcle, retomado setenta anos depois para indicar acontecimentos muito semelhantes.

A derrota militar italiana de setembro de 1943 - acompanhada igualmente de instantâneo aniquilamento de toda forma de organização pública e de vida associada independente - foi coloquialmente indicada, durante muitos anos, por uma expressão onomatopaica; o patatràc.

Na terminologia inglesa, na falta de eventos calamitosos atinentes aos povos anglo-saxões, os abalos dos impérios são indicados, tradicionalmente, por "decadência e queda" (decline and fall) tanto referindo-se ao Império Romano (Gibbon), quanto ao Terceiro Reich (Shirer).

Na hipótese, já sugerida como bastante provável, de a próxima Idade Média ter início nos Estados Unidos da América, e Ser acompanhada da morte de dezenas de milhões de pessoas, o termo adotado para indicar essa grave degradação instantânea se difundirá, verossimilmente, nos outros países, nos quais fenômenos análogos se verificariam em curto intervalo de tempo. É extremamente improvável que se venha a adotar um termo clássico como hecatombe, porque raríssimos anglo-saxões, embora cultos, conhecem sua existência. Parece mais razoável que se venha a adotar uma expressão já usada em outro sentido, como, por exemplo, knock-out - abreviado para K.O. - termo pugilístico, o qual recorda black-out, que é a palavra usada para indicar a grande falta de energia elétrica de novembro de 1965 e que, por seu turno, coincide com a palavra usada na época da guerra para a escuridão. A escuridão bélica, porém, decorria da proibição de existir, na cidade, luzes visíveis, quer nas vias públicas quer nas residências ou estabelecimentos diversos, e, mesmo, nos veículos. O black-out de 1965, pelo contrário, era conseqüência da total falta de energia elétrica e, semelhantemente, o K.O. futuro será uma eventualidade muito mais trágica do que aquela em que o pugilista que cai por terra, desmaiado, por ter recebido um golpe no queixo. Adotarei, na seqüência deste livro, a abreviatura K.O. e, neste capítulo, enumerarei os benefícios que deverão materializar-se logo após o K.O. e os danos, cada vez em maior número, que afligirão os sobreviventes à notável distância do tempo do K.O.

É claro que não faz sentido falar-se das vantagens e desvantagens de qualquer situação futura, como se, a esse respeito, as opiniões fossem, constantemente, unânimes. O professor Mishan, por exemplo, considera, provavelmente, uma vantagem, para si próprio e para os outros, uma eventual paralisação na produção em série do avião supersônico anglo-francês Concorde, unicamente porque sem os aeroplanos supersônicos se ouvirão menos "bang-bang", e se ficará, portanto, mais tranqüilo.

Por outro lado, os administradores da Rolls-Royce, que produzem os reatores para o Concorde, considerariam a mesma decisão como urna definitiva ratificação da recente falência de sua sociedade e, igualmente, danosa ao progresso e · mais longo prazo - ao bem-estar do povo inglês e de toda espécie humana. Entretanto, se os dirigentes da Rolls-Royce se convencessem da impossibilidade de vender mais de vinte Concorde (ao invés de duzentos necessários, para assegurar o lucro), também eles, em conformidade com o Professor Mishan, julgariam que sem o Concorde estariam mais tranqüilos - apesar de que sua tranqüilidade não decorreria do baixo nível de ruído, mas da resignação a impossibilidade de recuperar e fazer ressurgir a RollsRoyce.

Quando me referir, adiante, às vantagens do K.O., não quererei com isto dizer que estas serão, igualmente, acessíveis e desejáveis a todas as pessoas que sobrevivam ao K.O., mas somente que uma apreciável porcentagem dos sobreviventes delas se beneficiará.

Muitos dentre os sobreviventes experimentarão logo um extraordinário alívio pelo simples fato de que os graves problemas com os quais se defrontarão serão, ao menos, completamente diversos daqueles que os atormentaram por decênios. Os problemas da civilização avançada serão substituídos por aqueles próprios da civilização primitiva e é provável que a maioria dos sobreviventes seja mesmo constituida por pessoas particularmente aptas a passar, rapidamente, duma vida de civilização avançada para outra de condições primitivas. Os sobreviventes, portanto, não terão muita saudade daquilo que será destruido (de início, a destruição atingirá, principalmente, as estruturas, as funções e as organizações, e não os edifícios ou lugares), nem portarão um luto muito rigoroso por seus próprios amigos e parentes falecidos durante o K.O. É uma experiência normal que os infortúnios isolados sejam considerados como uma tragédia muito maior do que as catástrofes que golpeiam um número elevadíssimo de pessoas. E isto é válido não apenas para as catástrofes que atingem lugares longínquos. Não são somente os 500 mil mortos no Paquistão, ou os 200 mil em Biafra, a deixar-nos um tanto indiferentes; também a morte de um familiar em um acidente ocorrido em avião de carreira é considerada menos trágica do que aquela do mesmo parente num avião de turismo.

O primeiro benefício desfrutado pelos sobreviventes será o do fim do congestionamento: não existirão aqui, pessoas suficientes para congestionar alguma coisa. Neste ponto, muitos daqueles que agora lamentam a opressão, a angústia e a intrínseca brutalidade da vida numa sociedade tecnicamente evoluída e congestionada, concluirão que se estava melhor quando se estava pior e dar-se-ão conta de que deixar de utilizar as funções admitidas pelos grandes sistemas - nada de telefone, nada de luz elétrica, nada de automóvel, nada de cartas, nada de telegramas - pode ser muito interessante numas férias de uma ou duas semanas, mas não é absolutamente divertido como um estado permanente de vida.

Alguns desses sobreviventes poderão considerar benéfica a disponibilidade de muitos bens duráveis, verificando-se, a esse respeito um nítido excesso, por falta de demanda. A morte da maior parte da população de uma grande cidade - uma vez eliminados os cadáveres - torna disponíveis habitações, de todos os tipos, em superabundância em relação à sua procura.

Se os habitantes duma cidade que sofreu um K.O., possuíam, anteriormente, um automóvel para cada duas pessoas, após o K.O., esta relação pode estar invertida e, por um certo tempo, as pessoas poderão satisfazer sua própria necessidade de meios de transporte servindo-se simplesmente de um dos numerosos veículos abandonados: a indústria automobilística desaparecerá. Mais tarde, pela falta de veículos novos e com o desgaste dos antigos, os veículos abandonados serão utilizados como fontes de abastecimento em relação à troca até quando não for necessário recorrer-se a uma nova produção industrial, que funcionará, principalmente, sob a ordem de simples operários, ou artesanalmente, produzindo peças isoladas.

Verificar-se-á para os fabricantes uma situação semelhante à degradação progressiva, em relação a uma superabundância inicial e ao conseqüente desaparecimento da grande indústria da construção.

Um reduzido número (forçado à autarquia) de pessoas não poderá manter adequadamente nem mesmo as construções de que se utiliza e não se ocupará em fazê-lo quanto àquelas de que não se serve. Os móveis desocupados serão cercados por armações de madeira e qualquer elemento estrutural, o que - aliado aos danos causados pelas intempéries - causará abalos que atingirão também qualquer construção habitada. Daí, a longo prazo, as casas serão muito mais raras do que o eram anteriormente ao K.O., e novos escombros tornar-se-ão um típico componente da paisagem urbana. As ruínas antigas e nobres serão cobertas e obstruidas pelas recentes, segundo um processo semelhante ao que teve, lugar no período medieval precedente. Uma forte contribuição a abalos e destruições posteriores será devida ao vandalismo gratuito, o qual não será punido quando não for diretamente prejudicial e constituirá um dos poucos divertimentos disponíveis que restarão aos jovens.

Após o K.O., como durante a antiga Idade Midia, a distinção entre os objetos novos e usados perderá a grande importância que tem atualmente, distinguindo-se, únicamente, os objetos utilizáveis e eficientes dos que estiverem em más condições, não reparáveis. Inicialmente, isto acontecerá, como foi dito acima, pela disponibilidade gratuita de numerosíssimos objetos de segunda mão, mas em boas condições. ocorrerá, posteriormente, que os objetos novos serão extremamente raros - o que afastará toda conotação derrogatória do conceito de: "usado" - e, por outro lado, serão, em muitos casos, de qualidade bem mais baixa que, aqueles objetos usados produzidos com materiais de melhor qualidade e segundo a técnica mais refinada de produção. Antes do K.O., o nível de riqueza de um grande número de pessoas, nas nações desenvolvidas, levava a considerar respeitável quase que exclusivamente a aquisição de livros usados (desprezados somente por uns poucos novos-ricos, semicultos) e os objetos dos antiquários: a compra de um vestido usado não estava, praticamente, em cogitações. Os vestidos usados, posteriormente ao K.O., tornar-se-ão hereditários, além de adquiríveis e comutáveis. É de se esperar que ao menos este novo estado de coisas satisfaça aos atuais detratores da sociedade do consumo e a todos aqueles que se irritam, talvez com razão, com a existência da moda no campo dos bens duráveis, pela qual, por exemplo, muitos compram um carro novo somente para possuir um modelo mais elegante e recente e não porque o carro antigo funcionasse mal.

Uma limitação muito severa à inconstância e ao emprego dos veículos dever-se-á à escassa e irregular disponibilidade dos produtos petrolíferos e, mais tarde, dos combustíveis. Conseqüentemente, as viagens turísticas se tornarão muito raras e serão reservadas aos potentados ou, também, aos vagabundos, que serão forçados a fazer longos trajetos a pé. Aumentará muito a porcentagem das pessoas que jamais se deslocaram de seu lugar de nascimento, nem por trabalho, nem por prazer, ou por qualquer outra razão. A escassa freqüência de viajantes ocasionará o ressurgimento do banditismo endêmico. Viagens relativamente longas serão empreendidas em peregrinação. É de se esperar, de fato, que a nova e obscura época favorecerá o ressurgimento de uma religiosidade grosseira e difundida, expressa de forma que, hoje, não se poderia prever. Isto, incidentalmente, poderia ser classificado como uma das vantagens do K.O., por quem crê que a religião - como quer que seja, em qualquer lugar e não importando o nível - seja uma coisa benéfica.

Aquele que, contrariamente, julga ser a religião falsa e prejudicial, incluirá toda a ressurreição do espírito religioso e, paralelamente, das tendências mágicas e supersticiosas no cômputo, já bastante extenso, das desvantagens. Para algum etnólogo sobrevivente, uma nova florescência da cultura primitiva, diretamente observável em sua própria cidade, seria um milagre. Para os historiadores e sociólogos, igualmente, um retrocesso, em grande escala, da civilização moderna seria um fenômeno único e interessantíssimo, que, apesar dos riscos e incômodos, poderia ser classificado com a anotação "vaut le voyage".

No próximo capítulo, tratarei mais pormenorizadamente das novas formas de vida em sociedade, que se verificarão após o K.O. e das que constituirão uma evolução degenerativa das novas formas de rebeldia, em antecipação ao K.O., com o intento de corrigir a degradação dos grandes sistemas, já visivelmente iniciada.

No tocante aos aspectos econômicos, um importante componente da estrutura moderna de consumo deixará subitamente de existir: o crédito. Com efeito, em condições extremamente instáveis, ninguém poderia fornecer a um credor garantias efetivas do reembolso futuro.

Inicialmente, é verossímil que toda espécie de moeda perca o valor e as permutas sejam feitas unicamente por mercadorias in natura.

A intrínseca raridade poderá manter em uso as moedas de ouro e as de prata: convencionar-se-ia considerar-se o peso das moedas ou dos lingotes como a única determinante do valor e todo comerciante teria entre a sua aparelhagem profissional uma balança para pesar ouro e prata. Seria, por certo, interessante, sobretudo para os especialistas, tentar prever a evolução das estruturas bancárias após o K.O., como também a política monetária (se esta existir) e as características dos ciclos econômicos. Uma tentativa de previsão deste tipo, no entanto, não poderia ser encarada como algo além de um exercício sem muita seriedade - se refletirmos quanto é, atualmente, difícil (ou impossível?) fazer previsões, a prazo muito mais curto e sem levar em conta acontecimentos excepcionais como o K.O. As exatas estrutura e situação econômicas serão, por outro lado, gravemente influenciadas pelas novas estruturas legais e jurídicas, sobre as quais também, como veremos, não há muito a dizer, que não esteja num nível de imaginosa antecipação.

Outras vantagens a curto prazo poderão ser as relativas aos países denominados em processo de desenvolvimento que estão, atualmente, subjugados, colonizados, sujeitados pelos países mais adiantados, em via de retrocesso. Quando o retrocesso das nações mais evoluídas for, efetivamente, sensível, então essas opressões terminarão e isto será um alívio para as nações subdesenvolvidas.

O alívio, no entanto, será, provavelmente, breve, porque, a longo prazo, problemas muito mais graves surgirão em decorrência não apenas da falta de produtos extintos dos países em via de retrocesso, mas, igualmente, pela situação generalizada de conflito armado, tanto entre as nações involuídas, quanto naquelas que jamais haviam progredido, ou, ainda - a nível mais microscópico - entre cidades, vilas, famílias ou clientelas e entre indivíduos.