XII - Inutilidade do contestação

A 7 de agosto de 1934, a equipe de futebol da cidade de Dun Dealzan, na República da Irlanda, jogava fora de casa, no campo de Banbridge, em Ulster. A equipe católica viajara de trem, e ao chegar sentiu a atmosfera hostil reinante. Depois, durante a partida, o ânimo do público protestante estava exaltadíssimo e o jogo para os visitantes era, de fato, difícil. Chovera e o terreno estava pouco firme. Os católicos estavam, também, enlameados, além de contundidos, quando retornaram ao vestiários, derrotados por 5 a 1. Foram acompanhados à estação por uma pequena multidão que queria gozar até o último minuto o abatimento dos vencidos.

Quando o trem do retorno se movimentou em direção ao sul, uma voz de dentro da multidão gritou: "Esta noite, rangerão os dentes no Vaticano."

A idéia contida na base dessa história - de que Pio XI seja posto, continuamente, a par de qualquer caso mínimo em que se confrontem católicos e protestantes, eficientemente informado pelas famosas ramificações capilares das organizações jesuíticas e dos ativistas católicos - não é a menos absurda das suposições de muitos contestadores dos dias de hoje, a respeito do poderio da grande indústria e da sua infalível eficiência em planejar a arregimentação dos trabalhadores de todos os níveis e a submissão das massas a um controle total.

Não é fácil referir-se brevemente, e de modo significativo, aos pontos de vista dos contestadores e dos que protestam, porque faltam em seus escritos as definições dos termos usados; as passagens e as concatenações entre os argumentos são gratuitas; as informações sobre os fatos são cronicamente deficientes, de tal forma que qualquer interpretação das idéias expostas pode ser, apenas, hipotética.

Os contestadores não são citados unicamente por se exprimirem mal, mas, sobretudo, porque suas idéias mudam muito rapidamente e se desviam de seu curso. Pouco tempo depois de que Herbert Marcuse colocou junto em seus estudos Hegel, Marx e Freud, Charles Reich tentou superá-lo inventando a etiqueta da Consciência III, aplicável àqueles que se liberaram e seguem todo o instinto, fumando maconha e não aceitando responsabilidades. Falar-se-a, agora, por alguns meses, do revigoramento da América imaginado por Reich. Contudo, provavelmente, enquanto escrevo, qualquer outro está preparando uma nova fórmula, que porá de lado Charles Reich e proporá novas liberações e verdades mais intuitivas e vastas, mas, igualmente arbitrárias.

De qualquer maneira, as teses dos que protestam são bastante conhecidas e divulgadas. Segundo elas, a industrialização estabelece o terror na sociedade e força a maior parte da população a executar trabalhos alienantes. Mesmo quando os poderosos não empreendem ações violentas e diretas, sua propaganda abole toda a possibilidade de escolha, já que as alternativas apresentadas são ilusórias, em sua totalidade, correspondentes à finalidade de manter o sistema em funcionamento. A cibernética e os computadores podem contribuir para o controle total da existência humana.

Este modo de encarar as coisas é característico, propriamente, dos drop-out, isto é, daqueles que escaparam do sistema e deixaram de freqüentar a escola ou de trabalhar. Não existem, no meio deles, verdadeiros maoístas. Com efeito, mesmo entre aqueles que assim se designam, não se encontram senão alguns vestígios dos princípios fundamentais da revolução chinesa: o uso da razão; o recurso da argumentação; prioridade da instrução - particularmente da técnica e científica -; conservação e desenvolvimento da indústria; aumento da produtividade; melhoramento da organização não somente política e, ideológica, mas também contábil, hierárquica, produtiva -; disciplina militar, não apenas com os objetivos táticos, mas baseada na figura do soldado, que é igualmente cidadão, técnico e estudante.

Os verdadeiros maoístas propor-se-iam objetivos concretos, a curto prazo, e entre eles estaria, seguramente, o de manter a integridade e a eficiência não somente dos equipamentos industriais, mas da totalidade dos mecanismos de produção. os drop-out, pelo contrário, afirmam serem irrelevantes quaisquer questões de organização, quaisquer problemas concretos e quaisquer planos propostos para satisfazer as necessidades de grandes massas de homens. Não consideram importante o fato de que a liberação da coerção industrial faça diminuir a produtividade e que, conseqüentemente, milhões de homens ficam reduzidos à miséria. Negam a concatenação lógica entre a falta de! técnicos que estudam de modo coercitivamente eficiente -, a conseqüente incompetência técnica do pessoal e os desastres e as hecatombes devidos a essa incompetência. Consideram importante unicamente a destruição do sistema.

Essa destruição deveria começar com a negação de certas necessidades, como a luta pela sobrevivência, a necessidade de se ganhar a vida, os princípios da eficiência, da competição, a necessidade de produtividade e a de reprimir os instintos. A essa negação das necessidades podem acompanhar ações destrutivas para minar a autoridade e estabelecer a paz.

O objetivo final é o de atingir o reino da liberdade: para tal é preciso que se desenvolvam novas necessidades, no sentido biológico, e uma teoria do homem que gere nova moral, herdeira e negativa da moral judaico-cristã, que libere as atividades sexuais da repressão que sempre sofreram e assegure a todos solidão, calma, beleza e felicidade "não merecida". Para todos, o trabalho deveria tornar-se, um jogo.

Ora, é uma boa norma de higiene mental escolher-se um trabalho que agrade, divirta e apaixone. Mas essa simples consideração, puramente importante para a orientação das escolhas pessoais, não é suficiente para resolver, de modo geral, os dilemas da população inteira. Ter-se-ia atingido na República Popular Chinesa e no Japão o objetivo de tornar o trabalho, em si, desejável além dos limites do horário e prescindindo da remuneração: nos países do Extremo-Oriente, entretanto, esse resultado, seria corretamente obtido por meio de fortes estímulos de motivação, e mais facilmente assim do que por meio de vagas declarações de inexorabilidade do fim.

Essas aspirações poderiam ser consideradas como religiosas, por sua gratuidade e também porque indicam que muitos daqueles que as exprimem esperam a libertação por um profeta armado, que destrua os poderosos e proteja os oprimidos; por um ditador bondoso, que guie os confusos. E, fatalmente, o messias aguardado pelos contestadores se assemelharia muito ao homem forte desejado pelos reacionarios.

As semelhanças entre certos movimentos de protesto e os reacionários não são casuais. De fato, os dois tipos de movimentos têm uma base comum anti-intelectual, ambos afirmam a primazia de ação sobre a teoria e sobre o pensamento em geral, ambos recorrem prazerosamente mais à violência do que à persuasão e veneram romanticamente a juventude. As instituições de alguns drop-out assemelham-se mais às de Adolf Hitler do que às de Henri Bergson. Com o mesmo nome, os movimentos de anti-cultura recordam a famosa frase de Goebbels: "Quando ouço a palavra cultura, levo a mão à pistola."

A culpa mais grave dos contestadores é, no entanto, a sua ingenuidade. É falsa a sua crença em um vasto esquema pré-ordenado, danoso e desprezível, atribuído ao complexo comercial-industrial-militar.

Esses esquemas, quando existem, podem ser considerados, seguramente, execráveis - mas, não certamente, pré- ordenados com eficiência. A ingovernabilidade dos grandes sistemas, que venho descrevendo, é um fato muito concreto e demonstra que as reais involuções das sociedades desenvolvidas não são premeditadamente desejadas por quem quer que seja.

Assim, vamos sendo introduzidos nesses sistemas de modo casual e desordenado e este mesmo modo implica em que o sistema se degradaria e findaria por si só, mesmo que não sofresse ataques externos.

É estranho que aqueles que dedicam a maior parte de sua atividade à enumeração e à crítica dos defeitos da sociedade contemporânea tenham deixado de considerar o maior defeito: a deficiência e a fragilidade sistêmica.

Quando novas estruturas eventuais da sociedade têm certa esperança de se desenvolverem e de durarem, ocorre, novamente, que estão sendo considerados os seus aspectos sistêmicos e que estão sendo resolvidos, de modo racional, problemas que envolvem grandes números. Essa necessidade se impõe, com idêntica força, tanto em relação às estruturas antigas, que não podem sobreviver se não forem racionalizadas, quanto às novas, que não podem, sequer, começar a existir se as mesmas condições não se verificarem.

Aqui se encontra, ao contrário, o mais completo vácuo, Ninguém desenvolveu planos ou projetos para obter, contemporaneamente, a elevação do padrão de vida de grandes massas de pessoas, a disponibilidade de tempo - seja dos mestres, seja dos alunos - para dedicar-se à instrução da massa que atinge níveis cada vez maiores, renunciando, porém, a manter alta a eficiência e a aumentar a produtividade. As preocupações ideológicas impedem até de se suspeitar da existência dos problemas sistêmicos. Parece que as noções técnico-científicas dos contestadores derivam de mentes com, pelo menos, um século de idade. Nos últimos cem anos, pelo contrário, sucederam muitas coisas tanto no campo da ciência pura, quanto no da técnica e da organização industrial e interpretar o mundo atual como se fosse o de Thomas Alva Edison, com o acréscimo de alguns milhões de televisores, de automóveis e de estabelecimentos industriais um pouco maiores, não conduz, por certo, à compreensão da realidade contemporânea.

A ninguém valeria a pena ocupar-se das afirmações e teorias dos contestadores se a consideração única de seu grande número não levasse a julgar que, as suas ações podem acelerar, sensivelmente, a degradação dos grandes sistemas.

Já se sentem as conseqüências indiretas de seus atos. A porcentagem crescente de drop-out entre os jovens depaupera as novas levas de técnicos e de profissionais, criando uma situação à qual muitos industriais atribuem a responsabilidade pela decrescente produtividade de suas organizações.

As ações diretas - como as agitações, as greves gerais, as ocupações de universidades, fábricas, edifícios públicos e os bloqueios das estradas - podem paralisar a vida de uma nação inteira, como ocorreu na França, em meados de 1968. Estimou-se que a economia francesa necessitaria de um ano inteiro para recuperar as perdas sofridas naquele Inês de paralisação.

Entretanto, essas atividades subversivas são, de modo geral, episódicas, e não parecem capazes de conduzir a revoluções propriamente ditas, por causa da falta de planos preestabelecidos: os bons revolucionários devem ser, também, planejadores decentes. Odon Pohr - que foi, por breve período, ministro do governo revolucionário de Bela Kun, em Budapeste - sustentava que todo golpe de estado tem lugar no momento em que o sucesso ou o insucesso são decisivos apenas pela disponibilidade ou pela falta de uma série apropriada de selos postais.

Não é necessário crer-se numa vasta conspiração internacional que coordene, as revoltas estudantis de Berkeley e da Sorbone, de Berlim e de Roma, para atribuir, também, aos fenômenos das contestações as características de um grande sistema. No entanto, não se pode nem mesmo falar em uma degradação desse sistema, porque nunca atingiu, nem parece que vá atingir, um grau apreciável de eficiência. Os contestadores, portanto, não conseguiram criar uma nova sociedade, mas poderiam ser bem sucedidos, em qualquer caso, ao darem golpes fatais em sistemas já degradados. Todavia, ainda nisso, suas probabilidades de sucesso são mínimas. Em julho de 1970, o jornal clandestino East Village Other publicava o seguinte manifesto:

"Seja o primeiro, em seu isolamento, a fazer ir pelos ares a rede de energia elétrica do Nordeste." "O East Village Other tem o orgulho de anunciar o primeiro black-out anual dos bichos-papões, marcado para as 15 horas de quarta-feira, 19 de agosto de 1970. Coloquemos, uma vez mais, o sistema em prova. Liguem todos os eletrodomésticos sobre os quais consigam pôr as mãos. Ajudem as companhias produtoras e distribuidoras de energia elétrica a recolocar em ordem os seus balanços, consumindo o máximo que possam de energia e, oxalá, esforcem-se para consumir ainda um pouco mais. Sirvam-se, particularmente, dos aquecedores elétricos, das torradeiras, dos condicionadores de ar e qualquer outro aparelho de alta absorção de energia. Os refrigeradores regulados ao máximo e deixados com a porta aberta podem refrescar um grande apartamento, de modo divertido (1). Após uma tarde de alegria de consumo nos encontraremos no Central Park, para uivar à lua.

"Sintonizem-se! Ataquem as tomadas elétricas! Façam tudo ir pelos ares!

"Os hospitais e outros serviços de emergência estão advertidos e convidados a tomar as precauções devidas."

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(1) Não é verdadeiro: se se deixa uma geladeira ligada e com a porta aberta, a temperatura do ambiente se eleva, em vez de baixar.
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Na realidade, a 19 de agosto de 1970 nada foi pelos ares e aquele grupo particular de contestadores somente demonstrou a sua ineficiência e o seu reduzido número de seguidores. Um black-out de quatro horas verificou-se, por outro lado, em Nova York, em fevereiro de 1971, sem que ninguém o houvesse planejado ou premeditado.

O efeito do consumo excessivo de energia elétrica, realizado como um ato de rebeldia, não poderia ser decisivo sequer no futuro, se os sistemas possuíssem a solidez, bem maior do que a atual, sem a qual não podem ser conservados e muito menos continuarem a expandir-se. Mas essa solidez não existe e os contestadores poderiam poupar esforços se se dessem conta de que o odiado sistema está se abalando por si só.

É necessário esforçar-se duramente para entender como funciona um processo muito complicado, quer natural, quer governado pelo homem, mas a compreensão é facilitada pela lógica inerente ao próprio fato de que o processo funciona e que nisso são reconhecíveis as numerosas concatenações entre causas e efeitos. Muito mais difícil é compreender por que um processo complicado pára de funcionar: para diagnosticar um fenômeno patológico, precisa-se, de fato, primeiro conhecer bem a fisiologia. Essas considerações manifestam o erro no qual incorrem certos revolucionários improvisados. Por isso, nos países desenvolvidos do Ocidente, a sabedoria convencional honra formalmente a lógica, a racionalização, a economia (seja no sentido de frugalidade, seja no de otimização dos esforços capazes de atingir fins preestabelecidos) e o senso de responsabilidade. Percebe-se, porém, que os resultados não são satisfatórios e se atribui a culpa pelas instabilidades, degradações, ineficiências, esbanjamentos, injustiças, opressões, desigualdades e decadência, aos aspectos formais da sabedoria convencional. Conclui-se, portanto, que se poderiam obter melhores resultados, invertendo-se, simplesmente, aqueles princípios e cultivando a irresponsabilidade, o ilogismo, a improvisação e não se percebe que, contrariamente, são esses os próprios inimigos a serem combatidos, que já contêm, na realidade, as ações e omissões dos conservadores.

Em tal erro não incorreram os comunistas chineses: se forem os únicos a ficarem alienados disto, merecerão bem herdar o primado dos impérios caídos.