V - A impotência elétrica

É bastante raro que as indústrias produtoras de um certo bem invistam durante dois anos somas enormes em publicidade, com a finalidade de aumentar as vendas, para só então perceberem, após o sucesso da campanha publicitária, que sua capacidade produtiva é nitidamente inferior à demanda - tanto que são obrigadas a dirigir acalorados apelos aos fregueses no sentido de que limitem voluntariamente o consumo de seus produtos.

Entretanto, isto é exatamente o que sucedeu com as sociedades norte-americanas produtoras de energia elétrica, que até 1968 procuravam fazer aumentar o consumo de energia, induzindo o público a usar aquecimento elétrico e ar condicionado, mas que, no verão de 1969, pediam a todos que reduzissem o consumo, advertindo que se a autodisciplina fosse insuficiente, seria necessário recorrer a um racionamento obrigatório.

Neste campo, as coisas se tornam mais difíceis, porque o tempo necessário para construir uma grande central de produção de energia elétrica, ou uma linha de alta tensão de uns duzentos quilômetros de extensão, é de alguns anos do momento em que, se toma a decisão até o empreendimento da nova obra, Por esta razão, é impossível aos produtores americanos satisfazer a tempo a demanda, que eles mesmos tinham contribuído para criar, e também por esta razão será indispensável planificar as novas implantações a longo prazo e empregar os esforços adequados nos programas de pesquisa e desenvolvimento. Isto, às vezes, não ocorre. Em média, as sociedades produtoras de energia elétrica na América têm gasto nos últimos anos apenas 0,2 por cento de sua receita, enquanto o Bell System, que é o maior concessionário norte-americano de redes telefônicas (as quais, por seu turno, estão em situação muito crítica, como veremos detalhadamente em um dos capítulos seguintes), gastou cerca de 1,9 por cento de sua receita.

Em 1950, quando eu estava na universidade, ensinava-se que a necessidade de energia elétrica nos países desenvolvidos, e na Itália em particular, dobrava cada dez anos e, então, esta informação era bastante exata. Foi muito curioso encontrar novamente o mesmo dado, vinte anos depois, no Business Week (número de 11 de julho de 1970, pág. 52), apresentado como estimativa da Federal Power Commission, que avalia a demanda de energia elétrica para 1990 igual a quatro vezes a atual (o que corresponde exatamente ao dobro em cada dez anos). Foi ainda mais curioso ler no mesmo artigo que "alguns técnicos predizem o dobro da demanda de energia a cada oito anos" e, sempre no mesmo texto, que a demanda está crescendo de doze por cento ao ano - o que corresponde ao dobro a cada seis anos, mais ou menos. Business Week é uma revista séria, que documenta apuradamente as suas notícias, tomadas das mais informadas fontes federais e industriais, e que já em novembro de 1969 começara a publicar previsões sobre a crise de energia esperada para o verão de 1970. Ora, o fato de que sejam apresentados num editorial, impassivelmente e sem comentários, dados tão contraditórios, dá a nítida impressão do que o conhecimento da situação de base neste campo seja muito confuso nos Estados Unidos. Esta impressão é confirmada se se notar que a revista indica, entre as causas da crise de energia, uma grave carência de carvão fóssil, e cita - como dado dramático - a circunstância de que em 1969 a indústria queimou 7,8 milhões de toneladas de carvão a mais do que foi extraído das minas durante o mesmo ano, tanto que se teve de recorrer bastante às reservas. Este deficit de carvão fóssil pode causar certa impressão em quem não saiba qual é a produção total das minas americanas: se se observar, porém, que nos Estados Unidos são extraídos, em média, dois milhões de toneladas de carvão por dia, verificar-se-á que o deficit acumulado em um ano corresponde apenas a quatro dias de produção mineral, ou, em outras palavras, a pouco mais de um por cento da produção anual - o que não deve ser particularmente grave.

De resto, este sistema é tão grande e complicado que ninguém sabe exatamente como funciona, ou melhor, porque está deixando de funcionar. Na realidade, no tocante ao abastecimento de carvão às centrais térmicas - à parte a situação objetivamente difícil dos minérios e dos transportes ferroviários (insuficiência do número de vagões especiais) - parece, que um dos inconvenientes principais está na alocação irracional das disponibilidades existentes, isto é, o carvão, quando existe, se encontra em lugares errados. A Tennessee Valley Authority (que afirma ter reservas particularmente baixas em comparação com as normais), no verão de 1969, teve, de improviso, que decidir a transferência de duzentas mil toneladas de carvão da sua central de Bull Run para a central de Kingston, por meio de caminhões, para poder manter em funcionamento a segunda central.

Os fatos a que me referi dão um exemplo concreto do que afirmei: a crise de um sistema (neste caso, dos transportes ferroviários) pode contribuir para agravar a crise de um sistema diverso (neste caso, o sistema de produção de energia elétrica).

As dificuldades dos produtores de energia se somam, amplificando as dos construtores de máquinas elétricas, os motivos mais comumente citados desta dificuldade são: falta de pessoal especializado, baixa produtividade, indiferença dos subordinados, greves e - no que toca a novas obras, lentidão administrativa e controvérsias jurídicas. Em 1969, os produtores estadunidenses tinham projetado aumentar a potência instalada de 26.384 MW, mas o consumo levou a um aumento de apenas 22.470 MW, ou seja, inferior em 15 por cento ao programa.

Estes atrasos e estas desproporções tornam a situação americana muito semelhante à italiana: esta última melhorou, enquanto a primeira deteriorou-se nitidamente. Nos anos cinqüenta, os engenheiros eletrotécnicos italianos acreditavam ser uma fábula o fato de que há mais de vinte anos jamais faltara força nas redes de distribuição americanas, ao passo que na Itália os diagramas da tensão das redes apresentavam variações muito grandes e lamentavam-se as interrupções de fornecimento a cada mês, senão a cada semana, ou mesmo a cada dia.

Depois de 1967, começaram a registrar-se nos Estados Unidos casos mais importantes de interrupção do serviço. Em dois anos - da metade de 1967 à metade de 1969 - ocorreram 179 casos de interrupção que a Federal Power Commission considerou bastante importantes para analisá-los individualmente, e oitenta deles foram devidos a desarranjos das máquinas ou a funcionamento defeituoso de sistema.

O estado de coisas descrito acima tem andamento relativamente gradual e contribui certamente para criar as premissas de crises mais graves e imprevistas; mas é destas que é mais interessante tratar, pois farão parte integrante da ruinosa avalancha que defini como o surgimento da próxima Idade Média.

Depois do black-out (já citado no capítulo precedente) de 9 de novembro de 1965 na zona Nordeste dos Estados Unidos e em Ontário, ocorreu outro em 1967, que durou dez horas, nos Estados de Pensilvânia, Nova Jersey e Maryland. Em 1966, na zona de Saint Louis, a demanda de energia para os aparelhos de ar condicionado, durante uma onda de calor no verão, obrigou a Union Electric Company a racionar a distribuição de energia à cidade durante alguns dias. Em fevereiro de 1971, Nova York ficou novamente no escuro durante quatro horas.

Aquilo que interessa mais, do ponto de vista sistêmico, é observar quais as decisões, os planificações e os remédios sugeridos ou adotados para evitar a repetição dos black-outs totais citados. Com este objetivo, merecem ser examinados, em detalhes, as conclusões da Federal Power Commission, que redigiu um relatório em três volumes, dedicado à planificação coordenada e ao funcionamento das grandes produções de energia, a fim de assegurar a máxima confiança e para evitar futuras ocorrências de desarranjos em série e de interrupções do serviço em escala regional ou nacional.

Charles Concordia, da General Electric - que é, talvez, o mais competente especialista contemporâneo no tocante aos problemas da estabilidade e confiança das grandes redes elétricas -, escreveu ("Considerations in Planning for Reliable Electric Service", IEEE Spectrum, agosto de 1968) que, para obter um nível de segurança satisfatório, não há necessidade de mudanças revolucionárias, mas basta apenas aplicar princípios salutares de projeto, planificação e exercício. Neste ponto, um pessimista poderia dizer que a normal aplicação destes princípios salutares já constitui uma mudança revolucionária; mas, discutir as definições seria menos instrutivo do que um exame das sugestões concretas apresentadas por Concordia (que ele modestamente define como muito óbvias) e um confronto entre estas sugestões e os resultados do citado relatório da Federal Power Commission.

Concordia sublinha corretamente que a maior parte das interrupções de fornecimento de energia elétrica são causadas pelas redes periféricas de distribuição e não pelos grandes sistemas de geração e transmissão. Contudo, as interrupções que dependem destes últimos têm conseqüências muito maiores e, sobretudo, podem causar vastas crises secundárias de sistemas separados de comunicações, de transporte, de defesa, de higiene pública, etc., e merecem, por isto, uma atenção especial. Se consideramos aceitável uma interrupção do serviço uma vez a cada cinco anos, por causas devidas às redes de distribuição, é razoável aceitar que as interrupções devidas aos sistemas de produção e transmissão ocorrem dez vezes menos freqüentemente, ou seja, uma vez a cada cinqüenta anos (com duração média de interrupção igual a uma hora). Para obter isto, Concordia propõe três ordens de providências:

1. Os sistemas de produção e transmissão de energia devem ser projetados de modo que para cada futuro encargo previsto, a capacidade de produção e de transmissão esteja sempre pronta a impedir que qualquer incidente precipite condições para a ocorrência de um segundo. Por exemplo: se um alternador entra em pane, a energia que ele transmitia à rede antes do desarranjo é repartida entre as outras centrais, que continuam funcionando, o que pode contribuir para evitar condições de sobrecarga em outros alternadores que, por sua vez, podem ser postos fora de funcionamento pela ação de aparelhos automáticos de segurança. Este tipo de desarranjo "em cascata" pode propagar-se em tempos brevíssimos e até anular inteiramente a energia gerada por um grande sistema, sem que os operadores se dêem conta do que está acontecendo, e sem que possam intervir manualmente para dirigir a situação e melhorá-la. No caso do black-out do Nordeste da América do Norte, em novembro de 1965, a reação inteira em cadeia se concluiu em quatro segundos, a partir do instante em que um interruptor em pane cortou, repentinamente, uma das linhas de 230 kV, que emitia na rede a energia da Central Sir Adam Beck nº 2, próximo à Catarata de Niágara.

2. Os sistemas de produção e transmissão devem funcionar dentro de limites tais que assegurem reservas de capacidade suficientes para evitar os desarranjos em cascata. Este segundo principio permite descontar a margem de erros da capacidade existente segundo os projetos e se refere ao modo como os sistemas possam ser utilizados.

O aumento das linhas elétricas de interconexão é, genericamente, uma coisa boa, porque permite distribuir a demanda de vastas áreas de maneira mais equilibrada entre um número maior de centrais de produção. Porém, a complexidade do sistema que obtém o aumento das interconexões pode tornar mais difícil - e até mesmo impossível - uma eficiente vigilância automática do sistema. As margens de segurança não devem, por isto mesmo, ser aumentadas indiscriminadamente, mas calculadamente balanceadas com a necessidade de dispor continuamente de informações significativas que permitam intervenções automáticas, simples e eficazes.

3. Se se prescindir das margens de segurança no projeto e depois na realidade, pode sempre acontecer que ocorram condições críticas, seja pela concomitância de eventos de baixa probabilidade, seja, mais simplesmente, por incúria ou por erros humanos. É preciso, portanto, dispor e prever disposições finais de emergência que possam minimizar a importância e a duração das interrupções de serviço. Para evitar crises de dimensões muito relevantes, o melhor jeito é o de isolar parcelas de carga elétrica predeterminadas geralmente usadas para rebaixamento de freqüência: algumas subsidiárias serão prejudicadas, mas a integridade do sistema, no seu complexo, será conservada.

As sugestões de Concordia estão também no relatório da Federal Power Commission e o próprio autor o cita favoravelmente. O volumoso relatório contém, porém, muito mais e é interessante examinar a importância relativa atribuída às várias questões.

As conclusões e as recomendações da comissão são subdivididas em 34 subseções ao longo de nove capítulos.

O primeiro capítulo, com três subseções, se refere à formação de organizações de coordenação. O segundo capítulo, com onze subseções, trata da planificação dos sistemas interconexos. O terceiro capítulo, com nove subseções, se ocupa do exercício dos sistemas interconexos. o quarto capítulo, com três subseções, prescreve normas para a manutenção dos sistemas interconexos. O quinto capitulo, com uma subseção, indica o desejo da definição de critérios standard unificados para o projeto, construção, exercício e manutenção dos sistemas de produção e transmissão de energia. O sexto capítulo, com três subseções, sugere providências de emergência. no intuito de assegurar a continuidade de funcionamento dos sistemas de defesa e de outros sistemas críticos. O sétimo capitulo, com duas subseções, estabelece a responsabilidade dos construtores, especialmente no que trata das provas e experiências dos aparelhos. O oitavo capitulo, com uma subseção, invoca uma melhoria da educação profissional necessária para produzir em maior número técnicos e engenheiros de bom nível. O nono capítulo, com uma subseção, propõe trocas de informações técnicas com países estrangeiros que estão enfrentando problemas semelhantes de projeto e de uso.

A estrutura do relatório é claramente racional, mas é inquietante observar que cinco das subseções citadas têm o objetivo de sugerir a instituição de comissões, ou melhor, de organizações que se ocupem, na verdade, mais de escrever outros relatórios do que qualquer outra coisa. E que há familiaridade entre as inspeções e reuniões dos técnicos e sua inutilidade, na maioria dos casos apenas vacilantes.

Seis das subseções do relatório propõem incrementos das dimensões dos sistemas e, de novo, dão a antipática impressão de que as questões de racionalização tenham recebido menos atenção do que as atinentes ao aumento indiscriminado das reservas e da capacidade instalada. Os desenvolvimentos pouco dirigidos nesta direção são mesmo aqueles que conduzem a situações críticas de instabilidade e de insubmissão.

Finalmente, oito subseções são concernentes às providências de emergência para minimizar a gravidade das conseqüências dos black-outs que não podem ser evitados, malgrado as precauções citadas. Seria, talvez, muito pessimista sustentar que a atenção dedicada às providências de emergência é excessiva e denota uma desconfiança de base no sucesso das medidas sistemáticas voltadas para assegurar a continuidade do uso. Que a preparação para as emergências seja ainda hoje insuficiente está claramente demonstrado pelo fato de que, durante a grande interrupção de 1965, ocorreram graves danos aos turboalternadores das centrais térmicas, porque as bombas de lubrificação de seus grandes tampões ficaram sem alimentação - e isto foi suficiente para produzir paradas dos êmbolos e tais desgastes que puseram fora de uso os grupos por alguns meses, simplesmente pela falta de lubrificação durante a transitória parada das contrais.

A Federal Power Commission sublinha a necessidade, que, contudo, deve ser descontada, de prever alimentações de emergência - além dos serviços auxiliares das centrais (lubrificação, iluminação e comunicações) - também para: aeroportos, telecomunicações em geral, defesa militar e civil, repartições governamentais, sistemas de transporte de massas, comunicações e controles relativos às missões espaciais, serviços hospitalares e ferrovias metropolitanas.

Uma situação crítica parecida com a americana existe no Japão, onde o consumo de energia elétrica dobra a cada cinco anos e as linhas de transporte de energia, antiquadas e inadequadas, são particularmente pouco seguras e caracterizam-se por um rendimento muito baixo.

É difícil profetizar se as melhorias sistemáticas da produção e da transmissão de energia, estudadas em muitos paises, terão sucesso ou não. Minha previsão pessoal é bastante pessimista.

Um fator negativo posterior pode ser o das ações de sabotagem e da não-colaboração ao autocontrole do consumo por parte de grupos de contestadores. Se os sistemas fossem mais sólidos, não valeria nem a pena citar estes tipos de fatores marginais. Entretanto, dentro de pouco anos, também esses poderão produzir efeitos não desprezíveis e talvez representar a gota d'água que falta para entornar o copo.