CAPÍTULO 3

OS MALEFÍCIOS DA INFLAÇÃO

Não penseis que vim trazer paz à Terra.
Não vim trazer a paz e sim a espada.

Mateus 10,34

O fato de a empresa aproveitar as oportunidades de aumentar os seus lucros elevando seus preços faz parte das regras do jogo do mundo dos negócios. O problema, entretanto, é que se os aumentos não forem apenas esporádicos e pequenos, esse processo pode ficar fora de controle, desaguando fatalmente em uma inflação galopante ou numa hiperinflação, de conseqüências imprevisíveis e geralmente prejudiciais às próprias empresas. É a situação do "salve-se quem puder".

Esse fenômeno ocorre quando o governo, a quem compete coordenar a economia, perde a credibilidade e a liderança, como ocorreu no Brasil em 1964 e em 1982. Não é sem razão que um Ministro de Planejamento insistia em que "é impossível planejar"...

A inflação de 1790 na França espelha bem a situação a que pode ser levado um país: 13

Além da inflação de preços, surgiu uma classe especulativa. E ante a completa incerteza quanto ao futuro, todos os negócios se tornaram um jogo de oportunidades, e todos os empresários, jogadores. Nos centros metropolitanos surgiam rapidamente corretores de títulos e especuladores. Estes instituíram um feitio aviltante de negócios, que se propagou até as regiões mais remotas do país. Ao invés da satisfação com lucros legítimos, sobreveio a paixão por ganhos irregulares.

A partir de então, como os valores se tornaram mais e mais incertos, não houve também mais nenhum motivo para cuidado ou economia, mas tudo justificava despesas imediatas e desfrute no presente. Abateram-se, assim, sobre a nação, práticas que levaram à obliteração da parcimônia. Na mania de se auferir rendimentos para desfrute no presente ao invés de se prover para o conforto futuro, é que se encontraram as sementes de novas desgraças: desenvolveu-se a intemperança, insensata e extravagante, e também propagou-se como forma de ação.

Para alimentá-la, surgiram as trapaças em toda a nação e a corrupção por parte de autoridades e pessoas ocupantes de postos de confiança. Enquanto os homens adotavam esses comportamentos nos negócios privados e oficiais, as mulheres estabeleciam padrões extravagantes de vestuário e de forma de vida, que se somavam aos incentivos à corrupção.

A fé em considerações de ordem moral, ou mesmo em bons impulsos, caiu no descrédito geral. O sentimento de honra nacional foi considerado ficção alimentada somente por hipócritas. O patriotismo foi destruído pelo cinismo.

Essa desagregação da sociedade, em plena Revolução Francesa, resultou no golpe de Estado de 18 Brumário, que levou Napoleão Bonaparte ao poder.

Um outro exemplo bastante elucidativo dos malefícios da inflação se encontra na Alemanha pré-nazista de 1923: 14

Você pode dar um pulo na tabacaria para comprar um charuto. Alarmado com o preço pedido, você corre para um concorrente, acha seu preço mais alto ainda, e volta à primeira tabacaria, que já dobrou ou triplicou o preço nesse ínterim. Não há outro remédio senão você procurar sua carteira e tirar um volumoso pacote de milhões, ou mesmo bilhões de marcos, dependendo do tempo decorrido...

Nas tardes de sexta-feira você pode ver trabalhadores saindo das fábricas com cestas, sacolas e malas cheias de dinheiro. Isto não os beneficiava muito, pois os comerciantes, assustados e ambiciosos, sempre elevam os preços mais do que proporcionalmente à depreciação da moeda. Tornou-se necessário pagar salários diariamente e, por último, entre outras, a empresa Krupp começou a imprimir suas próprias cédulas bancárias. Os municípios, mesmo o menor deles, também procederam à impressão de cédulas; cabia a algum alto funcionário decidir o montante da emissão. É ocioso dizer que àquela época cessaram as falsificações como meio de vida.

Os que desejavam ganhar dinheiro sem trabalhar nunca encontraram condições tão favoráveis como na Alemanha de 1922 a 1924. Era necessário apenas um certo grau de habilidade e falta de escrúpulos. O trabalho honesto, embora especializado, levava a nada. Assim, mesmo as pessoas geralmente honestas, eram atingidas pela febre da especulação. Os agricultores enchiam suas casas com máquinas de costura, pianos e tapetes persas, recusando-se a se desfazer de sua produção de ovos e leite, a não ser em troca de artigos de valor permanente. Os estudantes de medicina tornaram-se corretores de títulos. Os professores discutiam em aula tópicos como o da conversão de pouco dinheiro em muito dinheiro. A resposta a que se chegava era: comprar moeda estrangeira, mantê-la em reserva por algum tempo e, depois, revendê-la. Dessa forma, um milhão poderia transformar-se em cinco milhões e, no final das contas, em um bilhão. 15

A inflação é também um germe que pode destruir o organismo em que se instala. Keynes, em 1919, já mencionava esse fato (149, p. 3):

Lênin, segundo se diz, declarou que a melhor maneira de destruir o Sistema Capitalista é desmoralizar a moeda. Por um contínuo processo de inflação, os governos podem confiscar, de modo secreto e despercebido, parte importante da riqueza de seus cidadãos. Com este método, eles não apenas confiscam, mas confiscam arbitrariamente; e, enquanto o processo empobrece a muitos, de fato enriquece a alguns.

A visão desse arbitrário remanejo repercute não somente na segurança, mas também na confiança quanto à eqüidade da existente distribuição da riqueza. Aqueles a quem o sistema traz ganhos extraordinários, além de seus merecimentos e mesmo além de suas expectativas e de seus desejos, se tornam "especuladores" objeto de ódio da burguesia -- empobrecida pelo inflacionismo -- assim como do ódio do proletariado. Na medida em que a inflação avança e o valor real da moeda flutua selvagemente de um mês para outro, todas as relações permanentes entre devedores e credores, que formam o fundamento último do capitalismo, se tornam tão completamente desordenadas que passam quase a não ter sentido; e o processo de aquisição da riqueza degenera em jogo e loteria.

Evidentemente Lênin estava correto. Não há meio mais sutil nem mais seguro de revirar a base da sociedade do que corromper a moeda. O processo mobiliza, para a destruição todas as forças ocultas da lei econômica -- e o faz de modo tal que nem mesmo um só homem em um milhão é capaz de diagnosticar.

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O CAOS MONETÁRIO
Brasil, 22-abr-89
O Brasil completa 489 anos com três moedas diferentes circulando ao mesmo tempo.

As principais distorções que a inflação causava, antes do paliativo da correção monetária, são apontadas por Simonsen (6) (31) (32) (33):

John K. Galbraith, respondendo à pergunta "Por que não aprendemos a conviver com a inflação?", aponta mais alguns males (9, p. 102):

Se um dia parássemos de nos empenhar em evitar a inflação, esta sem dúvida seria muito maior. E isso seria aceitar uma grave injustiça. Uma das causas da inflação é que muita gente tem controle, ou um certo controle, sobre suas rendas. Quem tiver o melhor controle pode proteger-se aumentando seus preços e talvez mesmo melhorando sua posição. Quem não tiver controle sofre e fica para trás. A distribuição de renda torna-se cada vez mais desigual, em favor dos poderosos.

As estatísticas americanas são bastante precisas nesse particular. Com a inflação, a renda é redistribuída dos velhos para as pessoas de meia-idade, e dos pobres para os ricos. E, com quase toda certeza, dos trabalhadores que não estão organizados em sindicatos, para aqueles que o estão. Isto não é muito compassivo, nem sequer muito seguro. Duvido que um dia tenhamos uma violenta revolta dos idosos, mas sabemos que podemos ter uma conduta furiosa nos guetos das cidades por parte dos pobres, dos negros e dos jovens.

Esse caráter redistributivo da inflação pode ser observado na tabela abaixo, publicada pelo DIEESE (34), onde se vê claramente que a inflação é maior para os que ganham menos:

FAIXA SALARIAL Aumento do custo de vida
de dez-70 a jun-85 em %
CR$ por mês US$/mês
até 1.024.000 178 1.894
de 1.024.001 até 2.049.444 178 a 357 1.826
acima de 2.049.444 357 1.700

A redistribuição de renda dos aposentados para os mais moços também se verificava. Por essa razão, eles fizeram várias passeatas em janeiro-84, exigindo um fim ao forte arrocho em suas aposentadorias. Vê-se aí a que ponto chegam as injustiças inflacionárias.

A substituição do cruzeiro por outras moedas também se notava. Como diz Celso Furtado, "A moeda boa caça a ruim". Assim é que na avenida Paulista, em São Paulo, os imóveis eram comercializados em dólares americanos. Um desses proprietários, logo após a última maxi, comentou radiante:

Ganhei várias vezes na loto, sozinho, num único dia e sem ter apostado nada!.

Tinha acabado de vender um imóvel. 16

Por outro lado, o custo da hora de consultoria variava de 3 a15 ORTN; cursos de 15 horas eram anunciados a 25 ORTN por aluno. O grama de ouro estava cotado a US$ 15.

A escalada desenfreada da corrupção é outro fato bem conhecido. Barros Jr. (36), coletando notícias de jornais durante um ano apenas (1981), conseguiu escrever um livro de 200 páginas. Entre os mais de cem casos relatados, encontram-se o Banco Central, Itaipu, Nuclebrás, Vale do Rio Doce, Sudam, Funai, INPS, Sudene, IBC, CBF, IBDF, EBCT, Banespa, Banco Econômico, Sharp, Incra, Universidade Católica de Goiás, Instituto Princesa Isabel, Faculdade de Medicina de Itajubá, Caixas Econômicas, CETESB, Detran, Banco do Brasil, Fepasa, Banco Cidade de São Paulo, Supletivo Total, Tribunais de Contas e inúmeros outros.

Infindáveis casos também são mencionados por Yunes (37), Assis (38), Bueno (39), Burnett (40) e Jornal da Tarde (12).

A imprensa informou que os votos para a indicação do futuro presidente na convenção do PDS estavam sendo negociados a até US$ 500.000 por convencional (41). Por outro lado, em novembro de 1982, a firma PROCONSULT adulterou os resultados da votação no Rio. Pilhada em flagrante, acabou-se a corrupção e Brizola foi eleito (164)(165)(166).

A perda da credibilidade no governo é outra conseqüência do descontrole do processo inflacionário. A seqüência de declarações a seguir, publicada na imprensa (42) (43), ilustra bem o fato:

"A inflação de 1983 será menor que a de 1982". Delfim Netto, fevereiro de 83.

"O governo não está brincando e vai usar todos os instrumentos para reduzir a inflação. Que ninguém se iluda porque, desta vez, é pra valer". Camilo Penna ministro da indústria e comércio, fevereiro-83.

"Quem prevê uma inflação de 150% este ano está completamente fora da realidade". Ernane Galvêas, Ministro da Fazenda, em março de 83, quando a inflação anual superou os 200%.

"A inflação vai baixar. Eu não aposto em julho, mas a partir de agosto". Affonso Celso Pastore, presidente do Banco Central, julho-83.

"A tendência da inflação é baixar. Eu não aposto em agosto, mas, a partir de setembro, não tenho dúvidas". Affonso Celso Pastore, setembro-83.

"A inflação começará a cair em outubro. Não é possível conviver com uma inflação de 160%" Ernane Galvêas, outubro-83.

"A inflação deste ano é um caso perdido". Ernane Galvêas, novembro-83.

"Estou satisfeito porque quase todos os objetivos foram atingidos. Só temos o problema da inflação, mas não se pode atingir 100%, não é mesmo?" Delfim Netto, na segunda semana de dezembro-83.

"O novo orçamento levará a uma redução dramática da inflação em 1984". Delfim Netto, na terceira semana de dezembro-83.

"A inflação vai ser o que der". Ernane Galvêas, janeiro-84

"Se a inflação fosse um cavalo, eu já a teria domado". Presidente João Figueiredo, 1983.

"Não haverá maxidesvalorização. Algumas pessoas dizem isso, principalmente em certas rodas sociais, para mostrar que estão bem informadas". Ernane Galvêas, alguns dias antes do anúncio da maxi de 30%, ocorrida em 21-fev-83.

"Fiz tudo o que sabia. Essa inflação brasileira não tem vergonha. O que já fizemos e ela não cai". Ernane Galvêas, junho-84 (162) .

Também se processava a passos largos o sucateamento da frágil indústria privada nacional (44)(45)(46), estranguladas pelas altas taxas de juros, 17 cujos valores reais ultrapassam 496% a/a (49). Em 83, a média foi de 45 concordatas por mês, em São Paulo. Aquelas que não dependem dos Bancos para crescer, evidentemente, levam vantagem (50). Por outro lado, vários empresários estavam fechando suas empresas e aplicando no Open (que era bem mais rentável), o que apenas contribuía para o aniquilamento do parque industrial brasileiro, sem o qual não se sai do subdesenvolvimento.

Um dos sutis mecanismos de sucateamento é descrito pelo industrial e ex-prefeito de São Paulo, o médico Wladimir de Toledo Piza, em sua obra "O Dinheiro do Brasil" (146, p.38):

Quem examinar de perto os movimentos de ida e volta da inflação, verificará que, a cada período certo, entre duas crises de inflação, surge uma "Campanha Contra a Inflação". O banqueiro, que está no leme das finanças, deixa a inflação correr solta durante um certo tempo. Antigamente esse período era de cinco anos. Agora é mais curto. Entre duas grandes campanhas contra a inflação, o povo trabalha e cria riquezas. O banqueiro acompanha esse trabalho meticulosamente, como o bacteriologista acompanha no laboratório o crescimento de uma colônia de germes. O Banco sabe quando a firma vai bem e vai crescendo, enriquecendo. No fim de cada mês seu chefe vai ao banco com o seu "borderaux", palavra que em português virou borderô. É a relação dos fregueses que compraram a prazo e aceitaram duplicatas. O banqueiro examina essas duplicatas e escolhe as melhores, as mais garantidas, aceitas pelas firmas mais fortes. Essas, ele desconta. As demais ele devolve. E o empresário leva-as a outro banco. Tenta descontá-las também. Ele precisa de dinheiro no começo do mês para pagar salários, matéria-prima, eletricidade, imposto, e -- como diz o espanhol -- "otras cositas más". Dessa forma, pode o banqueiro, mês após mês, acompanhar o negócio daquele que, a duras penas, montou sua firma e luta durante o dia, usando a noite não para dormir e sim para pensar.

Ao cabo de alguns anos o banqueiro conhece a firma melhor que o dono. E, como trabalha com uma porção de firmas, fica sabendo quais as que possuem melhor negócio. Prepara, então, uma "campanha contra a inflação". Os jornais anunciam que o governo, ouvidos os "técnicos", descobriu que a inflação está corroendo o organismo econômico da nação. Que o custo de vida está aviltando os salários. E que é indispensável lutar contra o flagelo da inflação!

No fim do mês o dono da firma, como fez durante anos, leva o seu borderô ao banco. O gerente nem olha: "Nada feito", exclama. E o pobre empresário, pequeno e modesto, olha estarrecido para a cara negativa do gerente: "Como? Por que nada feito?"

O gerente, que é empregado, que vive apenas de salários, sabe muito bem o que aquilo representa para o freguês, que ele sempre recebeu e tratou bem. Infelizmente nada pode fazer. São ordens da Diretoria. O governo resolveu fazer uma campanha contra a inflação e o Banco Central deliberou um corte geral no crédito!

Só quem já assistiu a uma cena como essa, que se repete no Brasil de tempos em tempos; só quem presenciou uma cena dessas, pode avaliar a cara do pobre homem, que trabalhou meses seguidos sem descanso, que perdeu noites de sono, bolando fórmulas de baratear a produção, para criar qualidades de competição para seu produto; só quem viu com os próprios olhos o triste espetáculo da chamada "Luta contra a inflação", pode sentir a miséria dessa manobra desumana, cruel, espantosa, que se repete neste país de tempos em tempos. Muitos pequenos empresários perdem a vida, levados ao suicídio ou assassinados por úlceras de estômago e duodeno, por crises de hipertensão, enfartes do miocárdio etc.

São crises pré-fabricadas. São crises estudadas meticulosamente, para produzir efeitos conhecidos e aguardados durante anos. São crises para que se possam assaltar patrimônios montados à custa de trabalho incessante, de noites mal dormidas, de esperanças frustradas. Os patrimônios, que se criaram durante o período que separa uma crise da outra, passam então para a mão do banqueiro. Como?

É simples. Não podendo enfrentar o seu primeiro fim de mês sem o recurso do desconto de duplicatas, o pequeno empresário está laçado e peado, como rês derrubada para a castração. Só lhe resta aceitar tudo que lhe for oferecido, por pior que seja, e aceitar com cara boa, sem dar mostra da revolta que lhe corrói a alma. E o banqueiro, com aquela máscara de bondade que afivela ao rosto sempre que chega a hora de esfolar alguém, lhe fala com doçura: "Meu gerente contou-me o seu caso. A sua firma nos merece a maior consideração. O senhor sempre trabalhou com afinco e honestidade. Seu negócio nos parece bom e rentável. Acontece, porém, que o senhor não dispõe de capital de giro. Essa história de falta de capital de giro, o leitor já ouviu, nem uma nem duas vezes, mas tantas vezes quantas foram as chamadas "campanhas contra a inflação" que já existiram. Descobre-se que o bom negócio, criado com suor, sangue e lágrimas, só pode subsistir se o seu dono conseguir, em plena crise de falta de dinheiro, um bom e sólido "capital de giro".

Como arranjar o capital de giro em meio à crise? Eis que o Diretor do Banco, com aquele ar bondoso de pai amantíssimo, condoído pelas dificuldades que o filho enfrenta, vai ao seu encontro: "Vamos ajudá-lo. O senhor deve aumentar o capital de sua firma e arranjar sócio que entre com dinheiro sonante, erva-viva". E o desgraçado, que ainda não pôde pagar os salários do mês anterior, que sabe que o seu operário já não tem feijão em casa, nem leite para o filho, o desgraçado ouve, como um hino cantado por anjos, a promessa de que o Diretor do Banco, seu amigo, que conhece bem o seu negócio, irá arranjar quem entre com dinheiro para ajudá-lo nessa hora crucial da sua vida. Não aparece, porém, qualquer interessado. Os tempos vão bicudos... Afinal, num assomo de bondade, mal contido, é o próprio Diretor do Banco que acaba por encontrar a solução: "Meu amigo" -- diz ele. "Não consegui interessar nenhum cliente do banco no seu negócio. Todos estão com falta de recursos. Mas não se impressione. O senhor é um amigo e nós não iremos abandoná-lo. Eu entrarei como seu sócio! "

Numa hora dessas, quem lê contrato redigido pelo advogado do Banco? Afinal o Diretor foi "legal", foi um pai. Ele mesmo foi socorrer o amigo em dificuldades. E, como é banqueiro, desapareceram os problemas de falta de dinheiro. . .

O contrato é assinado. E o negócio bom, criado com sacrifício durante dias e noites de trabalho, durante anos, passou para as mãos lisas, macias, suaves de um banqueiro, que soube esperar.

Assim se fizeram, no Brasil, as maiores fortunas. E ainda, por cima do bom negócio, em que nada se arriscou, ganhou o banqueiro fama, a fama de grande financista, capaz de assessorar qualquer governo, civil ou militar, populista ou reacionário.

Existe, no entanto, o reverso da moeda: os Bancos, na realidade, já não têm tanta força como dantes. Com efeito, eles se encontram, hoje em dia, parcialmente socializados, em mais de 50% de seus depósitos, como se pode depreender das declarações do vice-presidente do Banco Itaú, Luiz Carlos Levy. Segundo ele, é a seguinte a estrutura de distribuição dos depósitos à vista, nos Bancos brasileiros (167):

Depósito obrigatório no Banco Central, sem remuneração 55
Crédito rural, com taxas subsidiadas 27
Crédito à pequena e média empresa, com taxas subsidiadas 13
Depósitos em Caixa, para suprir as retiradas dos clientes 1
Resíduo à disposição do Banco, para empréstimos 4
Total dos depósitos à vista em conta corrente 100%

Outro caso, também bastante elucidativo, está relatado na carta que um produtor enviou a um jornal (115) (116):

Produtor de leite há vinte anos, e desde 1975 produzindo o do tipo B, cansado de não ver resultados financeiros compatíveis com tão desgastante atividade deste ramo da agropecuária, resolvi deixá-la.

Infelizmente, a insensibilidade do governo federal com relação à política do leite é algo espantoso, o que me leva a meditar sobre o que ocorrerá com a pecuária em 1984, se tudo não for modificado.

De nada adiantam os aumentos de preços, esmolados senão houver um controle eficaz com relação aos da ração, produtos veterinários, adubos e outros insumos, que sofrem majorações mensais absolutamente incompatíveis com a capacidade de troca do produtor de leite, e que se encontram nas mãos das multinacionais.

Não bastasse o problema do preço, temos que enfrentar também os "Barufaldis" da vida, comprado por determinada multinacional para denegrir a qualidade do leite "in natura" e em conseqüência aumentar o consumo do em pó, cujos "coliformes fecais" se encontram sob a forma "liofilizada", portanto sem perigo para o consumo humano. E viva a corrupção!

Voltando ao meu caso específico, diria aos leitores que comecei 1984 com o pé direito, pois tive a ventura de vender todo meu rebanho leiteiro. Fiz os 13 pontos sozinho e ter sorte assim não é para qualquer um.

Apurei Cr$ 31.000.000 oriundos do gado, já devidamente aplicados no mercado de papéis, ou melhor dizendo na agiotagem oficializada, que me está permitindo uma remuneração nunca antes vista.

Pasmem, senhores leitores, que somente com o numerário auferido (Cr$ 14.000.000) com a venda do maquinário existente em função do leite, como ordenhadeira mecânica canalizada, resfriador, trator, seus implementos, misturador de rações, latões, ensiladeiras etc., estou tendo uma renda mensal que nunca havia recebido de minha cooperativa.

Outro dado, para demonstrar quão "rentável" é produzir leite no Brasil, foi o fato de ter plantado 20 alqueires em milho, cuja finalidade era a ensilagem, que seriam transformados em alimento para o gado, sem que isso em nada fosse me "refrescar", e que produzirão 2.400 sacas que deverão render-me Cr$ 10.000.000 líquidos. Quer dizer, mais CR$ 1.000.000 mensalmente para colocar no bolso.

Dispensei quatro empregados, tendo ficado apenas um, o que reduziu sobremaneira minha despesa com pessoal. Infelizmente estou contribuindo para aumentar o desemprego no Pais, eu que durante 20 anos procurei valorizar ao máximo o nível de vida de centenas e centenas de trabalhadores rurais que passaram por minha propriedade.

Encontro-me, hoje em dia, frente a um dilema cruel que me tem roubado noites de sono: Não sei se irei a Los Angeles ver as Olimpíadas ou a San Jean Cap Ferrat curtir a temporada invernal de esqui.

"Entre les deux mon coeur balance". Heitor de Lima, Franca (115)(116).

Nesse desarranjo da economia, o moral nacional também é afetado, como se viu na declaração do diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), em 83: "Se o Brasil não acertar com o programa do Fundo, desaparecerá pelo ralo". Ao que retrucou Ulisses Guimarães: "Pelo ralo desaparecem ratos e baratas, não uma Nação" (42).

Mas, em 84, o FMI, que é controlado pelos banqueiros internacionais, voltou a ficar bravo com o Brasil:

O governo brasileiro precisará encaminhar um pedido de perdão ao FMI, por não ter cumprido as metas acertadas com ele no último trimestre do ano passado. (51)

Bem, "felizmente", nem tudo está perdido. Embora os banqueiros estejam preocupados com a nossa dívida externa, eles têm ainda uma saída para essa situação (52):

O clima de transição política e a crise econômica brasileira preocupam tanto os políticos norte-americanos e banqueiros internacionais que, para muitos deles, o País entrou numa fase de incerteza semelhante à da Argentina antes das eleições, e não cumprirá as metas acertadas ou por acertar com o FMI, este ano. Ou seja: terá de obter total reescalonamento de sua dívida, em outras condições, e talvez até trocar parte dos débitos pela participação dos bancos no capital de grandes empresas estatais. A terceira fase das negociações com o FMI vai atrasar muito, segundo uma fonte dos EUA.

Realmente, o Barão de Rothschild tinha razão ao afirmar: "Dai-me o controle da economia de uma nação, e pouco me importará quem formule as leis".

Finalmente, um dos maiores malefícios da inflação, senão o maior, é a redução ou mesmo perda da capacidade de previsão e de planejamento, tanto por parte das empresas, como das famílias e das donas-de-casa (158).

Com efeito, em um artigo que data de 1923, Keynes já havia destacado esse problema (149, p.10):

"Mas, se (a inflação) é uma fonte de ganho para o empresário, é, também, ocasião de opróbrio. (. . .) Em meio a rápida flutuação de suas fortunas, o próprio empresário perde o seu instinto de conservação, passando a pensar mais nos grandes ganhos do momento do que nos menores, mas permanentes, lucros dos negócios normais. A prosperidade de sua empresa no futuro relativamente distante pesa menos do que antes, e os seus pensamentos são excitados pela fortuna rápida e pela ânsia de vender. Seus ganhos excessivos lhe chegaram sem que ele os procurasse e sem culpa ou propósito de sua parte, mas, uma vez adquiridos, ele não os abandonará facilmente e lutará para reter sua presa. Com tais impulsos e assim situado, o próprio empresário passa a sofrer uma reprimida intranqüilidade. Em seu coração, ele perde a antiga autoconfiança em relação à sociedade, à própria utilidade e à necessidade do esquema econômico. Ele teme o futuro de seu negócio e de sua classe, e quanto menos segura ele sente a sua fortuna, mais estreitamente a ela se agarra.

O empresário Olavo Setúbal, do Banco Itaú, também tem seu ponto de vista sobre o assunto (155):

A especulação é fruto da desordem financeira. É uma conseqüência da falta de estrutura legal, porque toda mudança é uma decisão tomada entre quatro paredes, sem preparo algum. Acho que a especulação é o subproduto da instabilidade, da incoerência e do arbítrio. Ela nunca desaparecerá no regime capitalista, mas deve se manter em limites aceitáveis e toleráveis e não nas condições do Brasil, onde a especulação é preponderante. O retorno a níveis normais será um subproduto automático de um governo equilibrado".

 

Os malefícios da inflação são:


Notas:

13 V. Griffths (1), p.136. voltar ao texto
14 V. Griffths (1), p.131. voltar ao texto
15 No auge da inflação, um dólar americano estava sendo cotado no câmbio a 4 quintilhões de marcos (4.000.000.000.000.000.000). voltar ao texto
16 Em 21-fev-83, o cruzeiro sofreu uma desvalorização de 30%, passando de 293,41 para 381,44 CR$/US$. voltar ao texto
17 Num debate sobre a pequena empresa brasileira, um executivo afirmou: "Somos todos bancários porque trabalhamos para os bancos." (47). O presidente do Bradesco chegou a declarar em 83: "Realmente os banqueiros são os grandes bandidos da história, porque mantém as taxas de juros excessivamente elevadas." (42). Para saber o que mantém os juros tão altos, vide Conjuntura (48). voltar ao texto
18 O maior devedor do Brasil são as próprias estatais, cujo débito para com os fornecedores era de CR$ 504 bilhões (US$ 851 milhões) em 1983. Sua dívida total era de CR$ 11,5 trilhões (US$ 19,4 bilhões), quase igual à receita orçamentária da União em 1983. voltar ao texto