Procuram-se funcionários fantasmas

Melissa Sayon
17-out-2002
http://www.jobuniverse.com.br

Passar a tarde em Itapuã, ao sol que arde, com um notebook na mão, trabalhando. Essa última parte não é o ideal, mas já que são poucos os que podem abrir mão de ter uma atividade ganha-pão, virou o sonho de muita gente. E com a tecnologia, o trabalho remoto, sem a supervisão sufocante, sem as luzes gélidas do escritório, isso é possível. Bem, em tese, sim.

Na prática, não é tão simples. Trabalhar remotamente está longe de ser sinônimo de levar a vida na flauta. “A idéia de esvaziar prédios e ter todos os funcionários trabalhando de jeans é no mínimo ingênua”, revela um dos maiores especialistas no tema, o norte-americano Gil Gordon, que esteve no Brasil, em agosto.

Qual é, afinal, a definição de teletrabalho? Segundo Gordon, o termo pressupõe “descentralização” e não necessariamente “trabalho em casa”. Isso significa que um vendedor, que passa a maior parte do tempo visitando clientes, é um teletrabalhador em potencial. O conceito não é novo. As lavadeiras de roupas de antigamente, por exemplo, eram teletrabalhadoras por definição. O novo, agora, é a tecnologia, que abriu um leque de opções que não existiam. No Brasil, há poucos anos, com os celulares analógicos, conseguir fazer uma reunião era praticamente impossível, dada a má qualidade da ligação. Os aparelhos tinham o peso e a portabilidade de um tijolo. Hoje, os profissionais contam com celulares leves e eficientes, linhas digitais de alta velocidade e computadores portáteis, alguns com câmeras para videoconferência. É natural que essa infra-estrutura abrisse caminho e libertasse muitos profissionais dos limites do escritório.

O que difere um teletrabalhador de casa de outro que trabalha nas ruas, na visão de Gordon, é basicamente o aparato tecnológico. O primeiro monta um QG no próprio lar, com tecnologia tradicional, enquanto que o nômade utiliza recursos wireless (sem-fio). Claro que os desafios também são diferentes. Quem trabalha em casa terá que aprender a lidar com o problema de morar e trabalhar no mesmo lugar – o que pode não ser tão simples. “Esse é exatamente um dos motivos pelos quais não é qualquer pessoa que pode ser um teletrabalhador”, explica Gordon.

De acordo com ele, o candidato tem que preencher ao menos três requisitos: ter um espaço adequado para exercer sua função (não pode ser o meio da cozinha); ter um estilo compatível com essa opção, pois não são todas as pessoas que se adaptam, algumas realmente só conseguem ser produtivas dentro do escritório; e, por fim, saber separar a vida profissional da pessoal para não se distrair. “Algumas propagandas nos Estados Unidos mostram a pessoa com uma mão no computador e a outra acariciando um bebê. Isso é ridículo”, protesta. Não que o teletrabalhador não possa ter filhos, mas ele tem que ter uma estrutura que lhe dê privacidade na hora de trabalhar

O teletrabalho vem crescendo discreta e sistematicamente. Segundo estimativas da Sobratt (Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades), no próximo ano haverá 3,5 milhões de teletrabalhadores em potencial no Brasil. O número é fruto de cruzamento de informações da Abranet, Ibope e outros dados colhidos pela instituição, visto que ainda não existem pesquisas com metodologia profissional nessa área. Mas pela posição das empresas, que paulatinamente vêm adotando a estratégia de descentralizar o escritório, pode-se ter certeza de que o volume de profissionais remotos é cada dia maior. Gordon acredita que, tendo em vista o tempo que se perde no trânsito das grandes cidades, o teletrabalho é uma tendência sem volta.

Crescente popularização

Claro que para chegar ao patamar norte-americano (28 milhões de teletrabalhadores, segundo a Sobratt) ainda falta muito. O diretor de vendas da Norsul, Cláudio Rehfeld, lembra que, nos Estados Unidos, é possível encontrar carros equipados para pessoas que trabalham remotamente. Existem mobílias específicas para motoristas que querem transformar o banco do passageiro em um escritório portátil. No Brasil, os profissionais não contam com tantos recursos, mas já podem fazer videoconferência com câmeras acopladas a notebooks.

A Cisco é uma das empresas que garantem esse recurso. Segundo o presidente da subsidiária, Carlos Carnevali, 25% da força de trabalho é incentivada a se manter fora do escritório. Essa foi uma das maneiras que a companhia encontrou para conseguir aumentar o faturamento sistematicamente sem ter que fazer ajustes na estrutura o tempo inteiro. O escritório de Curitiba é o melhor exemplo. Ele foi fechado e hoje quatro pessoas, que trabalham de casa, dão todo o suporte para a região. Antes, eram oito. No total, a Cisco Brasil emprega 250 pessoas, entre São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Curitiba e mantém, segundo Carnevali, um terço da estrutura.

Mas a cidade na qual o projeto foi mais bem aceito foi São Paulo, onde 95% das pessoas aderiram. São dois andares de baias, cerca de 60 lugares, sem um dono fixo, além de auditórios e algumas salas fechadas. A estrutura foi dimensionada há dois anos e meio e nunca faltou lugares. Segundo Carnevali, o objetivo é que ainda caibam mais 50 pessoas no escritório, que poderá chegar a três funcionários para cada ponto de trabalho.

A Shell foi uma das pioneiras na adoção da prática, em 1998. A líder do projeto na época, Elen Hartmann, atual gerente de vendas da companhia, estima que a empresa tenha investido um milhão de reais para colocar 350 funcionários trabalhando remotamente. Inicialmente, deu toda a infra-estrutura, incluindo mesas, cadeiras, computadores e telefones celulares, além de 800 reais para que cada um fizesse as adaptações necessárias em casa. As despesas com malote, viagens e custo da comunicação também ficaram a cargo da Shell que estabeleceu mais 150 reais mensais para compensar gastos extras com eletricidade, telefone fixo ou quaisquer outros que o funcionário viesse a ter em decorrência do trabalho.

“Esse valor era uma maneira de remunerá-lo sem que ele precisasse abrir suas contas pessoais, mas se o funcionário achasse que seu custo era maior, era só justificá-lo que reembolsávamos.” Dessa forma, conseguiu uma redução anual na casa dos 300 mil dólares, contabiliza Elen. Mas o valor está longe de ser o fator motivador do projeto. Até porque uma estrutura dessas não é econômica, pois a empresa garante a reposição dos computadores a cada dois anos, ou seja, ganhou uma nova despesa, e alta, para manter seu projeto de teletrabalho. No final, a palavra empate é a mais adequada.

O que motivou a Shell? “Precisávamos de pessoas com a cabeça aberta, com a diretriz da companhia, mas que não fossem presas a um sistema de gestão antigo, com horário rígidos”, responde a executiva. A cobrança passou a ser de responsabilidade e não de horário. O resultado foi um funcionário mais dedicado, gerentes mais próximos dos clientes, decisões mais ágeis e aumento de eficiência da ordem de 30%, estima a executiva.

Para Carnevali, da Cisco, o argumento principal era justamente garantir que o funcionário estivesse sempre junto ao cliente. Em segundo lugar vinha o bem-estar do próprio empregado que, feliz, produzia mais. Mesmo assim, ele admite que, na Cisco, a redução de custos foi de quase 50%. A conta não é exata, pois as variantes são muitas e algumas intangíveis. Há que se contabilizar, por exemplo, o aluguel que a empresa pagaria se tivesse que dispor de uma estrutura maior. O ganho de tempo é praticamente impossível de ser avaliado. Mas é evidente que a hora de um técnico no cliente é mais produtiva que a hora que ele gastaria no trânsito, se fosse obrigado a ir ao escritório bater cartão.

Outra empresa que aderiu ao teletrabalho, a IBM, reduziu drasticamente seus escritórios de Manaus, Belém e Fortaleza, segundo Carmen Peres, diretora de RH. Hoje, apenas dez pessoas compõem a equipe de vendas e suporte dessa região e trabalham em casa. Os escritórios estão com menos da metade da estrutura anterior e mantêm apenas os técnicos de manutenção, o almoxarifado e estoque de peças.

Tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, a IBM mantém uma estação de trabalho para cada quatro pessoas que operam remotamente. No total, são 500 funcionários nesse modelo, que atinge consultores, gerentes de contas, de projetos ou vendas, entre outros. Brasília e Rio de Janeiro também têm profissionais que trabalham remotamente, embora isso ainda não tenha afetado o dimensionamento do escritório local.

O principal ganho da companhia chama-se produtividade, até porque poucas pessoas fora da empresa representam despesa adicional e não redução de custos. “Em pequena escala, o teletrabalho só aumenta meu custo pois fico com espaço físico ocioso na empresa e ainda crio uma despesa adicional para manter o profissional remoto”, contabiliza Carmen. O que não significa que o projeto não valha a pena. “Sabemos que o futuro é por aí e esse modelo nos garante flexibilidade.”

Barreiras

Se o teletrabalho é tão bom para a produtividade, por que nem todas as empresas apostam na tendência? “Existe o desafio cultural”, responde a executiva da IBM. “A tecnologia continuará avançando, mas não sei se as pessoas avançarão na mesma velocidade”. Em suma, a barreira cultural é maior que a tecnológica. Em primeiro lugar, é bom lembrar que trabalhar fora do escritório não é para todos. “Não dá, por exemplo, para colocar um recém-formado em casa, pois o aprendizado se dá muito no ambiente de trabalho.” A maturidade é essencial para quem vai trabalhar remotamente – o que favorece o time dos mais experientes. “De um modo geral, as pessoas gostam do convívio e muitos não ficam felizes isolados”, analisa Carmen.

Outro desafio é a rotina. Se o funcionário não conseguir se organizar, acaba perdendo sua vida pessoal para sua atividade profissional, que passa a ser exercida 24 horas por dia, sem a garantia de horas extras. É verdade que a responsabilidade de estabelecer esses limites não é só do empregado. Privá-lo do enlouquecimento da clausura intelectual, que já levou profissionais a trabalharem na garagem ou de terno dentro de casa, também é responsabilidade do empregador.

A empresa deve investir em treinamento e garantir o apoio remoto e, sobretudo, a comunicação com os colegas. Quem pensa que teletrabalho significa apenas dar um notebook para o funcionário e desejar “bon voyage” está enganado. “Existe todo um trabalho para que o profissional esteja remoto mas não se sinta exilado”, revela Cláudio Rehfeld, da Norsul, que está envolvido com um dos desdobramentos do teletrabalho, o e-learning, mas chegou a participar da primeira etapa do projeto da Shell. “O aperfeiçoamento contínuo evita que as pessoas se distanciem do foco corporativo”, explica. E esse compromisso vai desde a parte técnica – se o notebook quebra, a reposição tem que ser praticamente instantânea – até a orientação familiar.

Já que uma casa com espaço reservado para escritório não é a realidade na maioria dos lares brasileiros, o profissional tem que ter o apoio de seus familiares para desvirtuar a sala, tem que contar com os filhos para receber seus recados e com a boa vontade da esposa, que não deve ficar interrompendo seu trabalho para pedir que ele tire o lixo, por exemplo. “É preciso disciplina, principalmente no horário comercial”, esclarece Rehfeld.

Na Shell, segundo Elen Hartmann, foram feitas palestras e treinamentos sobre o autodesenvolvimento e o tema do teletrabalho foi tratado até com o apoio de psicólogos. O preconceito com as demais áreas da companhia também entrou em pauta. “Não é vergonha uma pessoa ligar para um consultor e dizer que está em casa”, explica a executiva. As soluções para lidar com o lado emocional do teletrabalhador são as mais diversas. A Cisco incentiva que seus funcionários venham à empresa para abastecer-se de informações e trocar experiências.

Outro desafio é a gerência dos teletrabalhadores. Muitos chefes tendem a achar que o funcionário só trabalha sob supervisão e é uma ilusão acreditar que só porque o funcionário está em sua mesa está sendo produtivo. “A diretoria tem que começar a gerenciar com a cabeça e não com os olhos”, adverte Gil Gordon.

Problemas com a lei

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ainda não respalda o teletrabalho. As empresas tentam se defender pagando todo e qualquer custo que o funcionário tenha para exercer sua função fora das baias do escritório. A Cisco garante toda a parafernália necessária para assegurar a mobilidade, desde linha de alta velocidade na casa do funcionário, até celulares, pagers e notebooks equipados com todos os recursos necessários ao dia-a-dia. “Eu pago para ele trabalhar em casa e arco com todos os custos. Não vou investigar se ele usou o celular para ligar para a namorada, confio até que ele me prove o contrário, mas se descobrir que ele está agindo de má-fé vou ficar muito bravo”, declara Carnevali.

A diretora de RH da IBM, Carmen Peres, afirma que os funcionários que trabalham em casa contam com escrivaninha e cadeira ergonômicas, telefone, fax e linhas de alta velocidade – tudo pago pela big blue. A empresa também assina um contrato com o funcionário na tentativa de se precaver contra futuros desentendimentos. O reconhecimento do vínculo empregatício é a questão menor, lembra Alvaro Mello, da Brasil Entrepreneur Consultores Associados. O artigo sexto da CLT estabelece que “não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado, desde que esteja caracterizada a relação de emprego”

A ressalva da legislação foi feita por conta das costureiras que trabalhavam para a indústria têxtil de suas casas. “Pessoas que trabalham de casa não têm como receber horas extras, mas o princípio de uma relação dessas com o empregador é justamente a confiança”, explica Mello. Em resumo, qualquer funcionário tem o direito assegurado por lei de questionar qualquer condição na qual se julgue lesado e, no caso das relações flexíveis do trabalho em casa, pressupõe-se que o empregado vá usar de bom senso e boa- fé, para não reivindicar nada absurdo. Se quiser fazê-lo, terá que provar, explica Taysa Elias Cardoso, da Opice Blum Advogados Associados. “Se o funcionário quiser pleitear horas extras terá grandes chances de perder pois não tem a contra-prova que é a fiscalização do empregador.”

Existem alguns processos em curso relacionados ao tema teletrabalho, mas que não podem ser considerados jurisprudência pois não chegaram à última instância. O recomendável para evitar problemas é manter o funcionário registrado e assinar um contrato individual de trabalho. Esse documento deve deixar claro que o profissional é um teletrabalhador que conta com uma ajuda de custo mensal para exercer sua função em casa ou em campo. No contracheque, recomenda-se que este valor venha discriminado.

O conselho mais útil é o cuidado na hora de escolher os teletrabalhadores. Afinal, quem quiser criar problemas na Justiça vai fazê-lo de casa ou na empresa, aposta Mello, da Brasil Entrepreneur. Elen, da Shell, concorda. “A maior parte das empresas não adotou o teletrabalho por conta da CLT. Também fizemos essa análise e descobrimos que o risco é pequeno.”

Pequeno se o projeto colocar o profissional em primeiro plano. “Tentamos montar uma estrutura que fosse boa para o funcionário, ele é o dono do seu tempo e pode almoçar com os filhos sem qualquer sensação de culpa. Não engessamos o projeto para não perder a flexibilidade.” O resultado foi dos melhores. Hoje, 500 pessoas trabalham nesse modelo, nunca houve desistência ou processos judiciais. Melhor ainda: alguns funcionários declinaram de propostas para trabalhar em outras empresas por salários maiores pois pesaram a flexibilidade nos horários. E, em vez de hora extra, os profissionais têm um programa de remuneração variável em função dos resultados apresentados. No fim, são os funcionários fantasmas mais produtivos da história.

Veja as vantagens, os desafios e os pré-requisitos para sua empresa entrar na era do teletrabalho

Vantagens

Desafios

Pré-requisitos

Fonte: Cláudio Rehfeld
Revista Business Standard
Setembro/2002