A 'Geração do Agora'
ALVIN e HEIDI TOFFLER
Estadão, 14-dez-2003
Um dos eventos definidores do século 20, a
2.ª Guerra Mundial e suas conseqüências, moldaram o futuro que habitamos hoje.
Ainda assim, estudantes universitários japoneses perguntaram recentemente a um
jornalista japonês: "Guerra? Qual guerra? O Japão e os EUA não foram sempre
amigos?"
Para eles, a guerra que acabou em 1945 nunca aconteceu. E se a 2.ª Guerra,
juntamente com os cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki, está sumindo da
memória social à medida que as novas gerações chegam, o que dizer então dos
outros eventos desse mesmo período? O que dizer do conhecimento sobre o - e das
atitudes em relação ao - Holocausto, que incinerou milhões de pessoas inocentes
porque aconteceu de nascerem polonesas ou judias ou ciganas? Ou seriam gays? O
que dizer sobre a entrada triunfal de Mao Tsé-tung em Pequim e a tomada
comunista da China em 1949?
Entre os velhos o bastante para se dar conta dessas coisas, esses eventos, ainda
carregados de emoção, permanecem na memória. Mas o que significam para um mundo
de 6 bilhões de pessoas com idade média de 25 anos, para quem a consciência
social mal alcança o período anterior aos anos 1990? O drama, a emoção, os
terrores e triunfos dos primeiros eventos estão tão longe que eles podem muito
bem ter ocorrido num universo paralelo.
A mesma erosão da memória se aplica, com muito poucas exceções, a celebridades
que ganharam status de ícone em suas épocas. Realezas hollywoodianas como Clark
Gable e Rita Hayworth, além de Charles Chaplin, são memórias perdidas. Os
turistas ainda aparecem com flores de vez em quando no local de descanso eterno
de Marilyn Monroe, mas poucos são jovens.
Elvis permanece como resultado de contínua promoção comercial, mas cada vez
menos crianças hoje sabem sobre os Beatles ou se importam com eles. O rosto de
Che Guevara, que já foi o símbolo da revolução (ainda que, ironicamente, ele
tenha fracassado no negócio da revolução), está fazendo um leve retorno como
acessório decorativo para jovens que mal sabem por que ele é famoso.
Ele também vai sumir.
Cada memória social de uma geração centra foco em seus próprios eventos
definidores: o assassinato de John F. Kennedy em 1963, a primeira caminhada na
Lua em 1969, a desocupação por meio de helicópteros da embaixada americana em
Saigon em 1975, a queda do Muro de Berlim em 1989, o fim da União Soviética em
1991 e, é claro, para a nova geração, os acontecimentos de 11 de setembro de
2001. Mas até esses acontecimentos históricos somem.
Os antigos, claro, entenderam isso, resumindo o fenômeno como "sic transit
gloria mundi" - assim passa a glória deste mundo. Mas eles não poderiam ter
adivinhado em que velocidade o passado se dissolve nos dias de hoje,
especialmente naquelas partes do mundo que passam por mudanças velocíssimas.
Amnésia de geração - A idéia de amnésia de geração é importante para entender
visões conflitantes do mundo e os estranhos direcionamentos políticos que estão
sendo tomados pelos elementos da nova geração alçados a posições de poder.
Ao redor do mundo, muitos dos maiores negócios são empreendimentos familiares
nos quais o controle do fundador dura muito tempo. Muitas das grandes empresas
foram formadas logo após a 2.ª Guerra e estão prestes a transferir o controle
para uma geração mais jovem. Isso, por uma estimativa, significa que um terço da
riqueza mundial está prestes a passar dos CEOs e presidentes de 60 e 70 anos
para os de 40 ou 50 anos, com parentes de 30 ou 40 anos e profissionais de
administração selecionados subindo com eles. Até quando suas memórias podem
chegar? Quão diferentes suas visões de mundo serão dos mais velhos que eles?
Na Coréia do Sul, onde a idade média é de 33 anos, a nova geração elegeu o atual
governo de Roh Moo-hyun e diz estar revertendo atitudes amistosas em relação aos
Estados Unidos e de hostilidade em relação à Coréia do Norte que duram 50 anos.
Se nossa recente experiência no câmpus da Universidade da Coréia é indicativa,
essa reviravolta está sendo superestimada pela imprensa mundial. Mas não é
insignificante.
O que esta geração sem história, que mal alcançou consciência nos anos 1980,
sabe sobre a guerra no início dos anos 1950, quando 37 mil soldados americanos
morreram ao lado de 140 mil soldados sul-coreanos para evitar que uma Coréia do
Norte apoiada pelos chineses tomasse o controle do sul? Foi essa guerra que
poupou a Coréia do Sul - hoje, uma das economias mais avançadas do mundo - de
acabar como seu vizinho do norte, com milhões de mortos de fome. "Jovens
sul-coreanos", nas palavras do romancista Suki Kim, "não têm lembranças da
guerra". O que ajuda a explicar sua atual política.
A mesma geração, no Japão, está escutando astros pop - afirmativos, rebeldes,
antiautoritários - encobrindo mudanças políticas significativas em um país em
que os eleitores octogenários conservadores tiveram um papel desproporcional no
partido dominante desde 1955.
Em um país levado às ruínas pelo nacionalismo, muitos jovens eleitores
demonstraram interesse nos mais antiocidentais e conservadores dos políticos. A
violência cada vez maior contra as sinagogas, cemitérios judaicos e pessoas
comuns já está fazendo com que os judeus estejam saindo da França, sem muito
alarde. Os jovens europeus lembram que, além de cometerem genocídio, os nazistas
transformaram em escravos milhões de seus avós?
Por sorte, jovens cegos moral e historicamente não são necessariamente
representativos de suas gerações. A nova geração tem muitas caras para
estereotipar, e milhões estão fazendo um trabalho útil e corajoso em
organizações de sociedade civil em torno do mundo - cuidando dos pobres, lutando
contra a aids, ensinando as crianças, cuidando de vítimas de estupro, ajudando
as mulheres do Afeganistão.
Memórias sociais variam, em diferentes partes do mundo - em parte por causa de
diferenças em seus ritmos de mudança. Em partes do mundo onde as mudanças são
mais lentas, o processo de esquecimento de geração também é lento e as memórias
são mais duradouras. Os mais velhos são mais respeitados porque podem se lembrar
do passado e tirar lições dele. Essas lições são um presente valioso para toda
nova geração porque, se pouco ou nada mudou, as velhas tradições, aperfeiçoadas
ao longo dos séculos, continuam sendo úteis.
Em países árabes com altos índices de pobreza, regimes não democráticos e
mudanças políticas e sociais lentas e dolorosas, imagens de um passado antigo
estão vivas como se fossem de ontem. Compare isso com o que está acontecendo na
China, onde as mudanças são velozes e furiosas. Onde as mudanças são rápidas e
duras, como acontece hoje na China, as lições dos mais velhos perdem valor. O
que funcionou para seus avós e pais talvez não funcione mais para as jovens
pessoas que vivem hoje em um contexto diferente, e os mais velhos, antigamente
reverenciados, já não são vistos como fontes de conselhos úteis e são menos
respeitados pelos mais jovens.
Num país conhecido pelo mundo por seus 5 mil anos de memória, a nova geração da
China vive correndo, impaciente, disposta a desfrutar cada momento. A nova
geração não compartilha do alerta do filósofo George Santayana de que "aqueles
que não lembram o passado estão condenados a repeti-lo".
Enquanto aqueles que vivem em sociedades de transformações lentas talvez
concordem com Santayana, os envolvidos no calor da mudança que está varrendo a
maior parte do mundo podem fazer a diferença. Na verdade, eles podem argumentar
que, onde a mudança é rápida, muito pouco do passado se repete.
Mesmo quando um evento particular parece fazer isso, o contexto do entorno terá
mudado, dando ao acontecimento um novo significado. E eles estão certos. A
mudança transforma a maneira como pensamos em mudanças.
Nem a falta de interesse da nova geração pelo passado está sendo substituída por
um interesse pelo futuro. Há tanta coisa acontecendo tão rápido, ao mesmo tempo
e em tantas dimensões diferentes, que muitos desistiram de esperar um
entendimento, o que dirá de antecipar o próximo acontecimento. E, se tanto o
passado quanto o futuro foram excluídos da consciência, o que resta é o agora.
O atual dilúvio de mudanças está mudando as idéias de tempo passado e tempo
futuro, eliminando tanto uma quanto a outra e deixando nada além do agora. É uma
situação tênue e perigosa. À medida que a aceleração das mudanças aumenta, o
passado e o futuro se aproximam, comprimindo o agora em nada. E este não é um
lugar muito feliz para alguém passar a vida.