Entrevista:
Alvin Toffler
O BIG BROTHER
O
autor de O Choque
do Futuro
diz que a tendência é sermos vigiados
o tempo todo por câmeras digitais
Rosana Zakabi
VEJA, 15-out-2003, p.11
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Alvin Toffler é especialista em apontar tendências para o futuro, tema de seus onze livros. Dois deles são best-sellers, com enorme influência ao redor do mundo: O Choque do Futuro, de 1970, e A Terceira Onda, continuação escrita dez anos depois. O título do primeiro refere-se à previsão de mudanças sociais e tecnológicas tão drásticas que deixariam as pessoas confusas. No segundo, ele mergulhou na análise dessas mudanças. Com duas décadas de antecedência, Toffler previu que as pessoas teriam PCs em casa. Também prognosticou o surgimento e a expansão da TV a cabo, por assinatura. Para escrever os dois livros, Toffler contou com a ajuda da mulher, Heidi, que colaborou com as pesquisas e editou os trabalhos. O primeiro emprego de Toffler, ainda adolescente, foi como operário na indústria automobilística. Mais tarde, graduou-se em letras e literatura e iniciou os estudos de fenômenos sociais. Foi editor da revista Fortune e hoje trabalha como consultor de empresas e de órgãos do governo americano, entre eles a Nasa. Da Califórnia, onde mora com sua mulher, Toffler, aos 74 anos, concedeu a seguinte entrevista a VEJA:
Veja – As
mudanças globais provocadas pelo ataque ao World Trade Center arruinaram as
previsões de muitos futurólogos. O ataque era imprevisível?
Alvin Toffler –
Os ataques realmente mudaram o mundo, mas não eram imprevisíveis. Em meus livros
lançados há trinta anos, eu já falava sobre o possível crescimento do terrorismo
e suas conseqüências para o mundo. Em um deles, apontava o World Trade Center
como um dos pontos mais suscetíveis a ataques terroristas. Mas previa um tipo de
atentado diferente, não por aviões, e sim um ataque eletrônico, com bombas
acionadas por meio de computadores ou algo assim. Não era o único que acreditava
nisso. Muitos consultores e especialistas já indicavam essa tendência, mas
ninguém levava a sério. Ninguém imaginava que a situação poderia chegar a esse
extremo.
Veja – Por
que o terrorismo não recorre a armas de maior sofisticação tecnológica?
Toffler –
Por mais que ocorram ataques sem uso de tecnologia sofisticada, foram os avanços
da tecnologia que contribuíram para o crescimento do terrorismo. Ao mesmo tempo
que esses avanços contribuem para o desenvolvimento da economia e da sociedade,
também podem ser usados com propósitos criminosos e violentos e, assim, pôr tudo
a perder. A tecnologia deu novo incentivo à produção de armas. O problema não é
o fato de estarmos produzindo armas mais poderosas, e sim que elas estão cada
vez mais baratas e acessíveis. Hoje, armas sofisticadas podem cair nas mãos de
qualquer um e se tornar uma ameaça à sociedade. Isso vale não apenas para grupos
extremistas, mas também para psicopatas como o americano Timothy McVeigh, que
explodiu um prédio e matou mais de 100 pessoas em Oklahoma.
Veja – O
senhor acha que o terrorismo será um fator determinante no modo como viveremos
no futuro?
Toffler –
Vários países, não apenas os Estados Unidos, terão cada vez mais dificuldades em
conciliar segurança com liberdade. Com o objetivo de prevenir ataques
terroristas, o governo americano precisará ter mais informações de como as
pessoas se comportam, quem está fazendo o quê, quem está entrando onde, quem
está freqüentando aulas de vôo na Flórida, e assim por diante. A necessidade de
fazer isso põe em risco certas liberdades civis que sempre foram colocadas em
primeiro lugar nos Estados Unidos e em muitos países. A tendência é que as
pessoas tenham cada vez menos liberdade de ir e vir sem ser vigiadas.
Veja – Como
as pessoas serão vigiadas?
Toffler –
Por meio de câmeras digitais, um dos grandes avanços dos anos 90. Os preços
foram baixando e hoje qualquer pessoa pode ter uma. Elas já substituem o guarda
de trânsito nas ruas e avenidas. Se você ultrapassar o limite de velocidade, não
é o policial que vai pará-lo. É a câmera que tira uma foto da placa de seu carro
e depois a multa chega a sua casa automaticamente. A tendência é aumentar ainda
mais o uso desse equipamento no futuro. Surgirão modelos cada vez menores, mais
baratos e mais potentes. Nós vamos criar uma sociedade investigativa.
Veja – Uma
sociedade investigativa?
Toffler –
Exatamente. No fim dos anos 40,
quando o escritor inglês George Orwell criou o personagem Big Brother (O Grande
Irmão, em inglês) no livro 1984, ninguém imaginava que pudesse existir na
realidade um governo capaz de monitorar todo mundo com o uso de câmeras. Não só
isso está acontecendo hoje, como em um futuro próximo homens e mulheres
precisarão se preocupar não apenas com o governo observando todos os seus
passos, mas também com o que eu chamo de Big Uncle (O Grande Tio, em inglês). Ou
seja, as grandes corporações coletarão as imagens e as conversas da população
com objetivos de marketing. E passarão a vender as informações entre elas.
Veja – Isso
quer dizer que seremos observados sem saber que estamos sendo vigiados?
Toffler –
Sim, isso fará parte do nosso dia-a-dia. As empresas vão observar o que fazemos
no supermercado, nas lojas, checando absolutamente tudo: nosso comportamento nos
corredores, em frente às prateleiras, tudo o que perguntamos aos vendedores,
comentamos com nossa mulher, marido ou filhos. O objetivo será saber mais sobre
o consumidor e lhe servir melhor, reduzir os custos com testes e pesquisas de
opinião e obter lucros vendendo as informações no mercado.
Veja – Se o
senhor pudesse, o que mudaria nas previsões feitas em seus livros?
Toffler –
Manteria os temas centrais
exatamente do mesmo jeito. Em O Choque do Futuro, eu disse que as
mudanças passariam a acontecer de forma acelerada. E que as pessoas e as
instituições teriam dificuldades em lidar com essa rapidez. Todos se sentiriam
obrigados a ter respostas imediatas, ficariam confusos na hora de tomar decisões
e sofreriam muito por causa disso. Isso está absolutamente correto. Mas eu
mudaria alguns detalhes. Vários exemplos que usei para ilustrar meu ponto de
vista não se tornaram realidade.
Veja – O
que não aconteceu?
Toffler –
Eu escrevi que quando tudo
começasse a mudar de modo acelerado muitas coisas se tornariam temporárias. Isso
está correto. Nós temos produtos descartáveis, idéias descartáveis.
Periodicamente, somos levados a jogar fora estruturas empresariais inteiras.
Somos obrigados a jogar amigos fora. Escrevi que teríamos roupas descartáveis,
feitas de papel. Não precisariam ser lavadas, pois seriam descartadas depois de
usadas. Bem, isso não aconteceu. Eu também mudaria o que disse sobre clones.
Veja – Por
quê?
Toffler –
Em 1970, ou seja, trinta anos antes de sair qualquer publicação científica sobre
a clonagem, eu disse que iríamos clonar animais. Também disse que iríamos clonar
humanos. Acredito que isso vá acontecer um dia. Meu erro foi apenas temporal.
Pensei que a clonagem iria ocorrer em 1985, mas demorou bem mais.
Veja – Em
que área científica o senhor prevê mudanças mais radicais no futuro próximo?
Toffler –
Analisando as tecnologias que
estão sendo desenvolvidas nesse exato momento, posso dizer que os maiores
avanços serão no setor agrícola.
Veja – Como
será esse processo?
Toffler –
A agricultura do futuro não terá como prioridade aumentar a quantidade de
alimentos, e sim a criação de tecnologias para melhorar a qualidade da produção
agrícola. Com os avanços nos estudos da genética, seremos capazes de criar
produtos cada vez mais resistentes e de custo mais baixo. A China e a Índia, que
têm as maiores populações do mundo, grande parte delas vivendo em áreas rurais,
estão investindo pesado em tecnologia agrícola. Com esses avanços, acredito que
será possível erradicar a miséria em muitos países em algumas décadas. É claro
que essa é ainda uma idéia utópica, pois não é possível fazer isso com as
condições atuais de trabalho nas áreas rurais. Será preciso investir mais na
educação para que esses avanços realmente aconteçam.
Veja – Os
alimentos transgênicos são o resultado de avanços tecnológicos, mas enfrentam
grande resistência dos ambientalistas. Por que é assim?
Toffler –
Ironicamente, as ONGs, que sempre se mostraram preocupadas em combater a pobreza
global e a fome, hoje são as mais interessadas em atacar a produção de
transgênicos. Na Europa há ONGs tentando bloquear a importação de alimentos
transgênicos de países pobres da África. Com o boicote, esses países foram
forçados a diminuir a produção de alimentos. Veja que tudo isso ocorre sem que
haja evidências de que os transgênicos trazem riscos para a saúde. Milhões de
pessoas já ingeriram esse tipo de alimento e não há comprovação alguma de que
tiveram a saúde prejudicada.
Veja –
Quais são as conseqüências da batalha contra a pesquisa genética na produção de
alimentos?
Toffler –
As campanhas promovidas por esses grupos e pela mídia sensacionalista causam
pânico desnecessário. Com essa atitude, obrigam os países e as empresas a
reduzir a produtividade e a usar métodos primitivos na agricultura. Ou seja, a
frear o desenvolvimento econômico e tecnológico. Apesar disso, eu tenho uma
visão otimista no quadro geral. Os países do Primeiro Mundo estão investindo
bastante em tecnologia e pesquisas de transgênicos. Acredito que aos poucos os
alimentos geneticamente modificados começarão a ser aceitos pela sociedade e em
um futuro próximo farão parte do dia-a-dia de todas as pessoas.
Veja – As
pesquisas espaciais, que tanto furor causavam há trinta anos, hoje despertam
pouca atenção. O senhor acha que um dia conquistaremos o espaço?
Toffler –
Nós colonizaremos outros planetas ou outros corpos celestes. No futuro, vamos
encontrar mecanismos que possam tornar possível essa empreitada. Hoje ainda é
inviável e não deve ocorrer em vinte ou trinta anos. Mas vai acontecer.
Veja – O
que faz o senhor ter tanta certeza disso?
Toffler –
Minha mulher, Heidi, e eu acompanhamos há anos o trabalho de um grupo de
cientistas da Nasa. Eles querem saber se os humanos podem viver no espaço. O
objetivo é descobrir se há possibilidade de as células permanecerem saudáveis
num ambiente sem gravidade. Ou seja, teoricamente, se suas células fossem
modificadas, o homem poderia sobreviver bem nesse tipo de ambiente. Os estudos
ainda estão em fase inicial, mas já indicam que a conquista do espaço é um sonho
possível.
Veja – O
senhor previu que a tecnologia causaria mudanças drásticas na família. A
estrutura familiar realmente sofreu alterações nas últimas décadas, mas o que a
tecnologia tem a ver com isso?
Toffler –
As novas tecnologias nunca vêm sozinhas. É um pacote: mudanças tecnológicas,
seguidas de mudanças sociais, políticas e culturais. Nos Estados Unidos, esse
conjunto de mudanças nas últimas décadas significou um novo modo de vida. A
força de trabalho que gerava riqueza passou do uso do bíceps para o uso do
cérebro. As pessoas depararam com um novo tipo de economia que mudou
praticamente todos os valores da sociedade. Os computadores começaram a ser
usados entre o fim da década de 50 e o início dos anos 60. As feministas logo
perceberam que as novas tecnologias, que requeriam o uso do cérebro em vez do
uso dos músculos, tornariam possível a ocupação de mulheres em postos de
trabalho que antes eram prioridade dos homens. Isso realmente aconteceu. Quanto
mais os computadores iam se expandindo, mais mulheres começavam a trabalhar.
Isso afetou a estrutura familiar e a criação dos filhos.
Veja – Isso
foi inesperado?
Toffler –
Ninguém imaginava. Anos antes de O Choque do Futuro ser publicado,
perguntei a vários especialistas qual seria o futuro da família. Naquela época,
os pais iam ao trabalho, as mães ficavam em casa, e cada casal tinha dois
filhos, em média. Esse modelo predominava em todas as cidades industriais. Os
especialistas opinaram que nada iria acontecer à família, que o núcleo familiar
já estava estabelecido e ninguém poderia mudá-lo. Eu duvidei. Não se pode mudar
a tecnologia, o trabalho, a base econômica da sociedade sem esperar que também
haja mudança na estrutura familiar. Uma coisa é conseqüência da outra. Hoje, a
família tradicional é minoria, pois a maioria das mães sai para trabalhar em vez
de ficar em casa tomando conta dos filhos 24 horas por dia. Essa foi a primeira
mudança em massa.
Veja – O
senhor acredita que haverá outras mudanças na vida da família?
Toffler –
As mudanças que vemos hoje devem continuar acontecendo. As famílias continuarão
menores que no passado, teremos pais solteiros, casais divorciados que se casam
de novo duas, três vezes. A sociedade começa agora a aceitar o casamento de
gays. O que nós vemos é uma diversificação da família. Nos últimos anos, os
americanos começaram a questionar os efeitos dessas mudanças no desenvolvimento
de seus filhos. Eles querem desacelerar o processo, mas eu não vejo como voltar
atrás.
Veja – O
movimento zen, que inclui filosofia, meditação, ioga e esoterismo, tem crescido
nos últimos anos. É uma moda passageira ou veio para ficar?
Toffler –
Eu acho que alguns detalhes específicos são apenas passageiros, mas há algo
maior nisso tudo. O movimento zen é um profundo ataque às idéias e aos valores
do iluminismo. O movimento iluminista, dos séculos XVII e XVIII, promoveu a
ciência, o ceticismo e o conceito do progresso. Foi o oposto da religião.
Naquele tempo, havia um grande abismo entre religião e ciência. A tendência é
que as duas coisas se aproximem cada vez mais.
Veja – O
que deve acontecer com as religiões?
Toffler –
A característica das religiões é a mesma da família. Elas estão se
diversificando graças ao acesso cada vez mais fácil à informação. Dentro da
mesma religião haverá mais grupos distintos, com idéias e comportamentos
diferentes um do outro, principalmente no catolicismo e no protestantismo.
Aumentará a competição entre as religiões e os grupos lançarão campanhas de
marketing para conquistar fiéis. Nós já vemos um pouco disso hoje, mas com
certeza será mais freqüente no futuro.