O vídeo na Justiça
Estadao, 11-jan-2007
As idas e vindas da Justiça paulista no caso da modelo
Daniela Cicarelli e de seu namorado, que levaram ao
bloqueio do site YouTube para mais de 5 milhões de usuários no Brasil e
tiveram uma repercussão altamente negativa no exterior,
demonstram as dificuldades que os tribunais vêm enfrentando para lidar com
conflitos inéditos causados pelas novas técnicas de comunicação, como a
informação instantânea propiciada pela internet.
As polêmicas decisões do juiz e do desembargador que intervieram no processo
ganharam destaque em jornais e revistas americanos, como The New York Times, o
USA Today e a Business Week, estiveram entre as notícias mais acessadas no site
da BBC e foram objeto de duras críticas da ONG Repórteres Sem Fronteiras, que
defende a liberdade de imprensa. Blogueiros e colunistas
do mundo todo colocaram na internet a cópia do vídeo cuja veiculação foi
proibida pelos dois magistrados. E as operadoras de telecomunicações que
acataram a ordem de tirar o YouTube do ar cogitam processar a própria Justiça,
pedindo o ressarcimento pelas perdas que tiveram ao deixar de contabilizar o
tráfego gerado pela exposição do vídeo que deu margem à confusão.
Tudo começou no último verão europeu, quando a modelo e seu namorado se exibiram
em sexo explícito à luz do dia e em lugar público, no mar, a poucos metros de
uma praia de Cádiz. As cenas foram gravadas por um cinegrafista amador e
colocadas na internet, tornando-se um dos vídeos mais acessados pelos
internautas. Meses após a gravação, a modelo e o namorado, invocando o direito à
privacidade, requereram a proibição da exibição do vídeo e abriram ações por
dano moral contra provedores, sites, blogs, colunistas, jornais e televisões.
No primeiro momento, o que se questionou foi se o casal, que, além de ter idade
suficiente para saber o que se pode e o que não se pode fazer em lugar público,
tem presença assídua nas colunas sociais, poderia invocar o direito à
privacidade e pedir ressarcimento pelos prejuízos sofridos em sua imagem pública
meses após a sua superexposição na internet e na mídia. O vídeo se tornou tão
conhecido que inspirou uma bem-humorada propaganda da Secretaria da Saúde gaúcha
para estimular a população a se proteger contra o mosquito da dengue.
A polêmica aumentou quando, no plano judicial, o titular de uma das Varas Cíveis
da capital determinou às operadoras que fornecem os backbones internacionais (a
parte central da rede) aos provedores de acesso à internet que bloqueassem o
acesso ao vídeo. O problema é que a decisão esbarra num problema de
territorialidade. Como pode o despacho de um magistrado paulista impor uma
obrigação a sites da internet que podem ser acessados por brasileiros, mas têm
sua sede em outro país? Como a ordem não pôde ser cumprida por inviabilidade
técnica, um desembargador do Tribunal de Justiça, não familiarizado com o mundo
da informática, mandou bloquear o acesso dos internautas brasileiros ao YouTube
e fixou pesada multa para as operadoras que descumprissem a liminar.
Em nota oficial, a direção do YouTube esclareceu que só é
obrigada a cumprir as leis dos EUA, onde fica sua sede. Diante das
críticas de que teria restringido a livre circulação de informações assegurada
pela Constituição brasileira, o desembargador informou ter determinado apenas o
bloqueio do acesso ao vídeo que exibe a modelo e seu namorado. Mas, sob a
alegação de que o que prevalece é a decisão nos autos e de
que o despacho vedava o acesso a todo o conteúdo do YouTube, as operadoras
brasileiras tiraram o site do ar, o que provocou a reação da imprensa
internacional, lembrando que só Cuba, China e Irã, países de regimes
totalitários, tomaram decisões tão drásticas como a da Justiça paulista.
Numa demonstração de sensatez, o desembargador voltou atrás e ordenou o
desbloqueio.
Embora os dois magistrados paulistas tenham atuado no caso de modo confuso e
tecnicamente impreciso, as críticas que têm sido feitas a eles são injustas. Na
realidade, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, os tribunais vêm enfrentando
grandes dificuldades técnicas e operacionais para atuar em questões que envolvam
novidades tecnológicas, como as técnicas de informação instantânea e em rede.