BIOGRAFIA   DE
ALLAN  KARDEC

 

Fonte: Allan Kardec: Obras Completas
Opus Editora, S. Paulo, 1991

Conferência de Henri Sausse,
quando da solenidade com que os espíritas
de Lion celebraram, a 31 de março de 1896, o
27º aniversário da desencarnação de Allan Kardec.

 

Senhoras e Senhores:

Várias pessoas que se interessam pelo Espiritismo demonstram inúmeras vezes o pesar de só conhecerem imperfeitamente a biografia de Allan Kardec, e de não saberem onde achar, a respeito daquele ao qual chamamos Mestre, as informações que desejariam obter. Assim, é com o fim de homenagear Allan Kardec e festejar a sua memória que nos encontramos hoje reunidos, e igual sentimento de veneração faz pulsar todos os corações. Por respeito àquele que fundou a Filosofia Espirita, permiti-me, na intenção de tentar corresponder a tão legítimo ensejo, que um pouco vos entretenha com esse mestre amado, cujos escritos são universalmente conhecidos e apreciados, e cuja vida íntima e trabalhosa existência são somente entrevistas.

Se foi fácil aos investigadores conscienciosos darem-se conta do alto valor e grande alcance da obra de Allan Kardec, lendo atentamente as suas produções, pouquíssimos conseguiram, por lhes faltarem até hoje os elementos necessários, adentrar a vida interior do homem e acompanhá-lo passo a passo no cumprimento de sua missão, tão grande, gloriosa e bem desempenhada.

Não apenas se conhece pouco da biografia de Allan Kardec, como também ela está por ser escrita. A inveja e o ciúme semearam a respeito dela os mais evidentes erros, calúnias imprudentes e grosserias.

Esforçar-me-ei, assim, por mostrar-vos, com luz mais real, o magno iniciador do qual nos orgulhamos de sermos discípulos.

É do conhecimento de todos vós, que nossa cidade pode orgulhar-se, com justo motivo, de ter visto nascer entre seus muros esse pensador tão ousado quão metódico, esse sábio filósofo, clarividente e profundo, esse operário sem esmorecimento, cujo labor fez tremer o edifício religioso do Velho Mundo e preparou os novos alicerces que seriam a base da evolução e renovação da nossa sociedade passadista, encaminhando-a para um ideal mais sadio, mais alevantado, para uma evolução moral e intelectual seguros.

Foi, de fato, em Lion que, no dia 3 de outubro de 1804, de tradicional família lionesa, os Rivail, nasceu aquele que mais tarde devia ilustrar o pseudônimo de Allan Kardec e alcançar para ele tantos lauréis para nossa funda simpatia, e nosso filial reconhecimento.

Aqui temos, sobre o assunto, um documento positivo e oficial:

Recebeu, desde o berço, o futuro fundador do Espiritismo, um nome querido e acatado, e toda uma tradição de virtudes, honra e probidade; inúmeros de seus avós tinham-se distinguido na advocacia e na magistratura, pelo talento, saber e escrupulosa probidade. Era de se esperar que o jovem Rivail deveria aspirar, igualmente, os louros e glórias de sua estirpe. Tal, porém, não sucedeu, porque, desde a sua juventude, sentiu-se atraído para as Ciências e para a Filosofia.

Em Lion, Rivail Denizard fez seus primeiros estudos e inteirou a sua bagagem escolar, na cidade de Yverdun (Suíça), com o famoso mestre Pestallozzi, do qual em pouco se fez um dos mais sábios alunos, colaborador eficiente e dedicado. Dedicou-se, com toda calma, à propaganda do sistema educacional que tão preponderante influência exerceu sobre a reforma dos estudos na França e na Alemanha. Inúmeras vezes, quando de todas as partes Pestallozzi era solicitado pelos governos, para criar institutos tais como o de Yverdun, confiava a Denizard Rivail o trabalho de o substituir na direção de sua escola. O discípulo, tornado mestre, tinha, sobretudo, com os mais legítimos direitos, a capacidade necessária para sair-se airosamente da tarefa a ele confiada. Bacharelara-se em Letras e Ciências e doutorara-se em Medicina, após completar todos os estudos médicos e defender com brilhantismo sua tese. Insigne lingüista, conhecia perfeitamente e falava corretamente o alemão, o inglês, o italiano e o espanhol; tinha conhecimentos, também, do holandês e com facilidade podia expressar-se nesta língua.

Alto e belo moço era Denizard Rivail, de maneiras distintas, bem-humorado sempre entre os íntimos, bondoso, obsequioso. Como a conscrição o incluíra para o serviço militar, conseguiu sua isenção e, depois de dois anos, fundou em Paris, à rua Sèvres, 35, uma escola idêntica à de Yverdun. Fizera sociedade, para esse empreendimento, com um seu tio, irmão de sua mãe, o qual entrava como sócio capitalista.

Denizard Rivail encontrou, no mundo das Letras e do Ensino, que ele freqüentava, em Paris, a senhorita Amélie Boudet, professora com diploma de 1ª classe. Era de baixa estatura, porém de harmoniosas proporções, gentil e graciosa, rica por herança dos pais, e filha única, inteligente, vivaz, soube com seu sorriso e seus atributos fazer-se notada pelo Sr. Rivail, no qual adivinhou, debaixo da franca e comunicativa alegria do homem amável, o pensador sábio e profundo, que reunia grande dignidade à mais esmerada delicadeza.

O registro civil dá-nos a saber que:

Assim, a senhorita Amélie Boudet era nove anos mais velha do que o Sr. Rivail, porém aparentava ter dez anos menos que ele, quando, no dia 6 de fevereiro de 1832, foi firmado em Paris o contrato de casamento de Hippolyte-Léon-Denizard Rivail, diretor do Instituto Técnico à rua de Sèvres (Método de Pastallozzi), filho de Jean-Baptiste Antoine e senhora Jeanne Duhamel, residentes em Château-du-Loir, com Amélie-Gabrielle Boudet, filha de Julie e senhora Julie Seigneat de Lacombe, residentes em Paris, rua de Sèvres, 35.

O sócio do Sr. Rivail estava dominado pela paixão do jogo; levou à ruína o sobrinho, perdendo fortes quantias em Spa e em Aix-la-Chapelle. O Sr. Rivail pediu a liquidação do Instituto, feita a partilha da qual cada um recebeu 45.000 francos. Tal soma foi empregada pelo Sr. e Sr.ª Rivail na casa de um dos seus íntimos amigos, negociante, que realizou maus negócios e, com sua falência, nada deixou aos credores.

Em vez de desanimar com esse duplo revés, o Sr. e Sr.ª Rivail puseram-se corajosamente ao trabalho. Ele conseguiu e pôde tratar da contabilidade de três firmas, que lhe davam perto de 7.000 francos anualmente e, findo o seu dia, esse incansável trabalhador aproveitava a noite para escrever, ao serão, gramáticas, aritméticas, livros para estudos pedagógicos superiores; fazia a tradução de obras inglesas e alemãs e preparava todos os cursos de Levy-Alvarés, assistidos por alunos de ambos os sexos do bairro de Saint-Germain. Em sua residência, organizou também cursos gratuitos de química, física, astronomia e anatomia comparada, de 1835 a 1840, os quais eram muito freqüentados.

Membro de inúmeras sociedades de sábios, especialmente da Academia Real d'Arras, foi premiado, por concurso, em 1831, apresentando a sua magnífica memória: Qual o sistema de estudo mais em harmonia com as necessidades da época?.

Devem ser citadas, entre as suas inúmeras obras, em ordem cronológica:

Sendo essas várias obras adotadas pela Universidade de França e vendendo-se em larga escala, o Sr. Rivail pode alcançar, graças a elas e à assiduidade de seu trabalho, uma singela abastança. Deduzindo-se desta muito ligeira exposição, vemos que o Sr, Rivail estava magnificamente bem preparado para a espinhosa missão que ia desempenhar e tornar triunfante. Tinha um nome conhecido e acatado, seus trabalhos merecidamente louvados, muito antes de imortalizar o nome de Allan Kardec.

Seguindo em sua carreira pedagógica, poderia o Sr. Rivail levar uma existência feliz, honrada, calma, com sua fortuna reconstruída pela perseverança no trabalho e pelo brilhante êxito que lhe coroara os esforços; sua missão o chamava para uma tarefa mais dispendiosa, a uma obra mais excelsa e, como muitas vezes teremos ensejo de evidenciar, ele mostrou-se sempre à altura da gloriosa missão que lhe estava destinada. Suas tendências e aspirações tê-lo-iam encaminhado para o misticismo, porém, a educação, o reto juízo, a observação metódica, puseram-no ao abrigo, tanto dos entusiasmos sem motivo como das negações injustificadas.

Em 1854 foi que o Sr. Rivail, pela primeira vez, ouviu falar nas Mesas Girantes, de inicio do Sr. Fortier, magnetizador, com quem estabelecera relações, em virtude de seus estudos sobre o Magnetismo. Um dia, o Sr, Fortier lhe disse:

Replicou o Sr. Rivail:

Este era, no início, o estado de espírito do Sr. Rivail, e assim o encontraremos inúmeras vezes, não negando nada por prevenção, mas exigindo provas e querendo ver e observar para acreditar; assim nos devemos mostrar em todas as ocasiões, no estudo tão atraente das manifestações do Além.


Até aqui, não vos falei senão do Sr. Rivail, professor competentíssimo, autor pedagógico famoso, Nesse período, contudo, de sua vida, de 1854 a 1856, um novo horizonte se descortina para esse pensador profundo, para esse percuciente observador. O nome Rivail, então, se obscurece, e cede lugar ao de Allan Kardec, que a fama levará a todas as parte do globo, repetido por todos os ecos e idolatrado pelos nossos corações.

Aqui temos como Allan Kardec nos revela as suas inquietações e hesitações, e também a sua primeira iniciação:

A estas declarações, obtidas nas Obras Póstumas de Allan Kardec, deve-se ajuntar que, de início, o Sr. Rivail, em vez de ser entusiasta dessas manifestações e ocupado por outras preocupações, quase as abandonou, coisa que teria feito não fosse os insistentes pedidos dos Srs. Carlotti, René Taillandier, membro da Academia das Ciências, Tiedeman-Manthése, Sardou, pai e filho, e Didier, editor, que durante cinco anos vinham acompanhando o estudo de tais fenômenos e haviam compilado cinqüenta cadernos de diferentes comunicações, que não conseguiam ordenar. Conhecedores das vastas e raras aptidões de síntese do Sr. Rivail, esses senhores mandaram-lhe os cadernos, solicitando que deles tomasse conhecimento e os coordenasse --- ordenasse-os. Tal trabalho era árduo e tomava muito tempo, devido às falhas e obscuridades dessas comunicações; o sábio enciclopedista não podia aceitar essa tarefa cansativa e absorvente, em virtude de outros trabalhos.

Uma noite, através de um médium, seu Espírito Protetor, deu-lhe uma comunicação toda pessoal, em que lhe dizia, de permeio a outras coisas, tê-lo conhecido em uma existência anterior, quando, ao tempo dos Drúidas, ambos viviam nas Gálias. Ele usava, então, o nome de Allan Kardec, e, como continuamente aumentava a amizade que lhe guardara, esse Espírito prometia-lhe auxiliá-lo na tarefa importantíssima a que ele era solicitado, e que com muita facilidade empreenderia.

O Sr. Rivail, portanto, entregou-se à obra: tomou os cadernos, anotou-os cuidadosamente. Depois de acurada leitura, eliminou as repetições e ordenou em sua respectiva posição cada ditado, cada relatório de sessão; apontou as falhas a preencher, as obscuridades a aclarar, e organizou o questionário necessário para atingir esse resultado.

Em 1856, o Sr. Rivail freqüentou as sessões espíritas que eram feitas à rua Tiquetone, na residência do Sr. Roustan, com Mlle. Japhet, sonâmbula, que conseguia, como médium, comunicações bastante interessantes, com o auxilio da cesta de bico aguçado; fez que fossem examinadas por esse médium as comunicações que conseguira e postas anteriormente em ordem. Tal trabalho foi realizado, de início, nas sessões comuns; mas, por solicitação dos Espíritos, e para que fosse dedicado mais cuidado e atenção a esse exame, prosseguiram-no em sessões particulares.

Esse livro era em formato grande, in-4, em duas colunas, uma destinada às perguntas, outra, em frente, às respostas. No instante de dá-lo à publicação, o autor ficou bastante embaraçado em resolver como o deveria assinar, se com o seu nome --- Denizard-Hippolyte-Léon Rivail --- ou com um pseudônimo. Por ser muito conhecido o seu nome no mundo científico, devido aos seus trabalhos anteriores, e podendo dar origem a uma confusão, talvez até prejudicar o êxito do empreendimento, ele adotou a sugestão de o assinar com o nome de Allan Kardec que, conforme seu guia lhe revelara, trouxera dos tempos dos Druídas.

A obra obteve um êxito tal que prontamente se esgotou a primeira edição. Allan Kardec fê-la reeditar em 1858 sob a forma atual, in-12, revista, corrigida e consideravelmente aumentada.

Em 25 de março de 1856, Allan Kardec estava em seu gabinete de trabalho, prestes a compulsar as comunicações e organizar O Livro dos Espíritos, quando escutou repetidas pancadas na parede. Investigou, sem encontrar a causa, e voltou a entregar-se à obra. Sua mulher, tendo entrado por volta das dez horas, escutou os mesmos ruídos; procuraram, mas inutilmente, o lugar de onde provinham. Residiam, então, à rua dos Mártires, 8, segundo andar, ao fundo.

Escreve Allan Kardec:

De regresso à sua casa, Allan Kardec deu-se pressa em reler o que escrevera e verificou, assim, o grave erro que efetivamente cometera, A distância de um mês marcada para cada comunicação do Espírito Verdade, poucas vezes foi mantida. Ele se manifestou com freqüência a Allan Kardec, não em sua casa, porém, onde por espaço de um ano não pôde receber comunicação alguma, por nenhuma espécie de médium, e sempre que esperava conseguir algum resultado, era detido por uma causa qualquer e inesperada, que se opunha a isso,

Foi no dia 30 de abril de 1856, na residência do Sr. Roustan, através da médium Mlle. Japhet, que Allan Kardec recebeu a primeira revelação da missão que devia desempenhar. Tal aviso, de início muito obscuro, foi reafirmado no dia 12 de junho de 1856, pela médium Mlle. Aline C. A 6 de maio de 1857, a Sr.ª Cardone, através da leitura das linhas de mão de Allan Kardec, deu confirmação das ditas anteriores comunicações, das quais não tivera conhecimento. Por fim, a 12 de abril de 1860, em casa de Sr. Dehan, tendo como intermediário o Sr. Croset, médium, essa missão foi outra vez confirmada por uma comunicação espontânea, obtida na ausência de Allan Kardec.

O mesmo aconteceu com respeito ao seu pseudônimo. Inúmeras comunicações, vindas dos mais diferentes pontos, vieram reafirmar e fortalecer a primeira comunicação obtida a esse respeito.

Levado pelos acontecimentos e pelos documentos que tinha em mãos, e tendo em vista o êxito de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec formara o projeto de editar um jornal espírita. Dirigira-se ao Sr. Tiedeman, solicitando-lhe auxilio pecuniário, porém este não se animara a participar dessa empresa. Allan Kardec indagou de seus guias, no dia 15 de novembro de 1857, por meio da Srta. E. Dufaux, como devia proceder. Respondeu-se-lhe que pusesse em execução a sua idéia e não se preocupasse com o resto.

E essa tarefa cresceria sempre em trabalho e responsabilidades, em incessantes batalhas contra obstáculos, ciladas e perigos os mais diversos. À proporção, contudo, que a tarefa se fazia mais áspera, esse enérgico lutador se elevava, igualmente, à altura dos acontecimentos, que jamais o surpreenderam. E, por onze anos, nessa Revista Espírita, que vimos de observar como nasceu modestamente, ele enfrentou todas as borrascas, todas as invejas, todos os ciúmes que não lhe foram poupados, como ele próprio conta e como lhe fora anunciado quando fora revelada sua missão. Essa comunicação e as reflexões anotadas por Allan Kardec demonstram-nos, sob um prisma pouco lisonjeiro, a situação naquele período, mas ressaltam, também, o grande valor do fundador do Espiritismo e o seu galardão por ter sabido triunfar.


Depois de tomarmos conhecimento de todas essas lutas, de todas as infâmias de que Allan Kardec foi vítima, como ele se engrandece aos nossos olhos e como seu esplendente triunfo assume mérito e brilho! Em que se tornaram esses invejosos, esses pigmeus que tentaram obstruir-lhe o caminho? Na maioria, são desconhecidos os seus nomes, ou não despertam nenhuma lembrança: o olvido os retomou e sepultou eternamente em suas sombras, ao passo que o nome de Allan Kardec, o intemerato lutador, o audaz pioneiro, passará à posteridade com a sua auréola de glória tão legitimamente conquistada.

A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas foi fundada no dia 1º de abril de 1858. Até este dia, as reuniões se realizavam em casa de Allan Kardec, na rua dos Mártires, com Mlle. Dufaux como médium principal. No seu salão podiam estar de quinze a vinte pessoas. Em breve, ele reuniu aí mais de trinta. Tornando-se esse local, então, muito acanhado, e desejosos de não sobrecarregar Allan Kardec com todos os encargos, alguns dos que aí assistiam resolveram fundar uma sociedade espírita e alugar um outro local para efetuarem as reuniões. Era, porém, necessário, para se poderem reunir, alcançar o reconhecimento e a autorização da polícia. O Sr. Dufaux, que conhecia pessoalmente o prefeito de polícia da época, encarregou-se de dar os primeiros passos para esse desideratum e, graças ao Ministro do Interior, gen. X, adepto das novas idéias, obteve-se a autorização em quinze dias, ao passo que, pelo processo comum, teriam sido necessários meses, sem muita probabilidade de sucesso.

Após ter dado conta das condições em que se formou a Sociedade e da tarefa que precisou desempenhar, Allan Kardec exprime-se assim (Revista Espírita, 1859, pág. 169) :

Adiantemos logo que essa demissão não foi aceita e que Allan Kardec foi reeleito por unanimidade, com exceção de um voto e uma cédula em branco. Diante dessa manifestação de simpatia, ele se resignou e manteve-se em suas funções.

Em setembro de 1860, Allan Kardec empreendeu uma viagem de propaganda à nossa região, e aqui temos uma referência da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas:

No transcorrer dessa viagem, Allan Kardec fez um discurso estupendo, no banquete realizado a 19 de setembro de 1860, do qual temos aqui alguns trechos, próprios a nos interessar, a nós que desejamos substituir dignamente esses trabalhadores da primeira hora:

Esse conceito de Allan Kardec a respeito dos espíritas de Lion, na época em que viveu, é para nós imensa honra, mas também deve ser uma regra de conduta. Devemos esforçamo-nos para sermos merecedores desses elogios, aprofundando, por nosso turno, as lições do Mestre e, acima de tudo, adaptando a elas nosso procedimento. Noblesse oblige, diz um rifão; saibamos lembrar-nos sempre disso e manter alto e firme o estandarte do Espiritismo.

Contudo, Allan Kardec não se dava por satisfeito em lançar flores sobre nossos amigos; dava-lhes, acima de tudo, sábios conselhos, sobre os quais, por nosso lado, devemos meditar.

Aqui temos os conselhos tão sábios e tão práticos dados por aquele que pretenderam fazer passar por entusiasta, místico, alucinado. E essa regra de conduta, formulada no início, não foi ainda invalidada, nem pela observação, nem pelos acontecimentos. É sempre a trilha mais segura, mais prudente, a única que devem seguir aqueles que desejam se ocupar do Espiritismo.

Allan Kardec trabalhava, então, no Livro dos Médiuns, que surgiu na primeira quinzena de janeiro de 1861, editado pelos Srs. Didier & Cia., livreiros-editores. O Mestre explica sua razão de ser nos termos seguintes, na Revista Espírita.

Constitui-se ainda o Livro dos Médiuns o vade mecum de todos os que desejam se entregar proveitosamente à prática do Espiritismo experimental. Nada surgiu de melhor nem de mais completo nessa ordem de idéias. É também o mais seguro guia de que nos podemos servir para explorar, sem risco, o terreno da mediunidade.


No ano de 1861, Allan Kardec fez nova viagem espirita a Sens, Mácon e Lion, e constatou que o Espiritismo, em nossa cidade, atingira a maioridade.

Por ocasião dessa viagem, novo banquete reuniu outra vez, sob a presidência de Allan Kardec, os membros da grande família lionesa espirita. No dia 19 de setembro de 1860 os convivas eram somente uns trinta; a 19 de setembro de 1861 o número subia a 160,

A 14 de outubro do mesmo ano, temos Allan Kardec em Bordéus, onde, como em todas as cidades pelas quais passava, semeava a boa nova e fazia brotar a fé no futuro.

Além das viagens e dos trabalhos de Allan Kardec, esse ano de 1861 ficará inesquecível nos anais do Espiritismo por um fato de tal forma monstruoso que quase parece incrível. Quero referir-me ao auto-de-fé levado a efeito em Barcelona, onde foram queimadas pela fogueira dos Inquisidores trezentas obras espíritas.

O Sr. Maurício Lachâtre, nessa ocasião, era livreiro estabelecido em Barcelona, em relações e comunhão de idéias com Allan Kardec. Desse modo, solicitou a este que lhe mandasse certo número de obras espíritas, para as expor à venda e fazer propaganda da nova filosofia.

Tais obras, talvez em número de trezentas, foram enviadas nas condições comuns, com uma declaração em ordem do conteúdo das caixas. Chegadas à Espanha, foram cobrados os direitos alfandegários ao destinatário e arrecadados pelos agentes do governo espanhol. Porém, a entrega das caixas não foi realizada: o Bispo de Barcelona, julgando essas obras prejudiciais à fé católica, fez confiscar a expedição pelo Santo Ofício.

Como não desejassem fazer chegar ao destinatário essas obras, Allan Kardec reclamou a sua devolução. Porém sua reclamação não surtiu efeito e o Bispo de Barcelona, fazendo-se de policiador da França, fundamentou sua recusa com a seguinte resposta: "A Igreja Católica é universal e estes livros sendo contrários à fé católica, não pode o governo permitir que eles passem a perverter a moral e a religião de outros países".

Estes livros não somente não foram devolvidos, como também os direitos aduaneiros ficaram para o fisco espanhol. Allan Kardec estava no seu direito de promover uma ação diplomática e obrigar o governo espanhol a efetuar a devolução das obras. Os Espíritos, contudo, o demoveram disso, dizendo ser preferível para a propaganda do Espiritismo deixar que essa ignomínia seguisse o seu rumo.

Reeditando os fastos e as fogueiras da Idade Média, o Bispo de Barcelona fez com que fossem queimadas em praça pública, pela mão do carrasco, as obras incriminadas.

Aqui temos, como documento histórico, o processo verbal dessa infâmia clerical.

Diminuir-se-ia o horror de tais atos segui-los com a descrição dos comentários; ajuntemos apenas que ao reverbero dessa fogueira, o Espiritismo tomou um impulso inesperado em toda a Espanha, e, como tinham previsto os Espíritos, alcançou aí um número incontável de adeptos. Podemos, somente, como o fez Allan Kardec, contentarmo-nos com a propaganda valiosa que esse ato odioso fez em favor do Espiritismo. No que tange, porém, à propaganda que nós mesmos devemos fazer de nossa filosofia, jamais devemos olvidar estes conselhos do Mestre (Revista Espírita, 1863, pág. 367) :

Tais conselhos, como todos os que partem de Allan Kardec, são límpidos, simples, e especialmente, práticos; é preciso que nos recordemos deles e os aproveitemos no tempo oportuno.


O ano de 1862 foi fértil em realizações para a difusão do Espiritismo, Num dia de janeiro surgiu a pequena e magnífica brochura de propaganda: O Espiritismo em sua mais simples expressão.

Tal apelo foi atendido, pois a pequena brochura difundiu-se profusamente, devendo muitos a esse magnífico trabalho ter entendido a finalidade e o alcance do Espiritismo.

Tendo os nossos antecessores no Espiritismo transmitido a Allan Kardec, no Ano Novo, a expressão de seu sentimento de agradecimento, aqui temos como o Mestre respondeu a esse testemunho de simpatia:

Tudo merece citação nestes conselhos, tão justos como práticos; mas é necessário que nos limitemos, em virtude do tempo de que podemos dispor.


Atendendo pedido dos espíritos de Lion e de Bordéus, Allan Kardec empreendeu, em setembro e outubro, uma longa viagem de propaganda, por toda parte semeando a boa-nova e dando conselhos, apenas, porém, aos que lhes pediam; o convite que lhe dirigiram os grupos lioneses estava subscrito por quinhentas assinaturas. Uma publicação especial relatou essa viagem de mais de seis semanas, no transcurso das quais o Mestre presidiu a mais de cinqüenta reuniões em vinte cidades, onde por todo lugar foi alvo do mais cordial acolhimento e se sentiu feliz por constatar os grandes progressos do Espiritismo.

Sobre as viagens de Allan Kardec, como algumas influências hostis tivessem espalhado o boato de que eram feitas às custas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, sobre cujo orçamento, igualmente, sacava antecipadamente todos os seus gastos de correspondência e da manutenção, o Mestre rebateu, assim, essa falsidade:

No ano de 1862, Kardec fez ainda aparecer uma Refutação de Críticas contra o Espiritismo, sob o ponto de vista do materialismo, da ciência e da religião.

No mês de abril de 1864, publicou a Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo, com a explicação das parábolas de Cristo, aplicação e concordância das mesmas com o Espiritismo. O título desta obra, mais tarde, foi alterado, sendo hoje o Evangelho Segundo o Espiritismo.

Aproveitando-se do período das férias, Allan Kardec fez, em setembro de 1864, uma viagem a Antuérpia e Bruxelas. Fazendo sentir aos espíritas belgas a maneira como encarava os grupos e sociedades espíritas, relembra o que dissera já em Lion, no ano de 1861:

As sociedades numerosas têm seu motivo de ser debaixo do ponto de vista da propaganda; porém, no tocante a estudos sérios e continuados, é preferível que se formem grupos íntimos.

No dia 1.º de agosto de 1865, Allan Kardec deu à publicidade nova obra: O Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo, obra em que são relatados inúmeros exemplos da situação dos Espíritos no mundo espiritual e na Terra, e os motivos que causaram essa situação.

Os extraordinários êxitos do Espiritismo, seu desenvolvimento quase inacreditável, deram-lhe incontáveis inimigos; e, à medida que se foi engrandecendo, cresceu, igualmente, a tarefa de Allan Kardec. O Mestre era dotado de férrea vontade, um poder de combatividade admirável; era um trabalhador incansável; levantava-se, em qualquer estação, já às quatro e meia e a tudo dava resposta, às polêmicas violentas lançadas contra o Espiritismo, contra ele mesmo, às inumeráveis cartas que lhe dirigiam; atendia à direção da Revista Espírita e da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, à codificação do Espiritismo e ao preparo de suas obras.

Esse excesso físico e intelectual acabou por esgotar-lhe o organismo, e muitas vezes os Espíritos precisam chamá-lo à ordem, para obrigá-lo a poupar a saúde. Ele, contudo, conhece que não viverá mais que uns dez anos, ainda, muitas comunicações o trouxeram prevenido desse termo e fizeram-no sentir, mesmo, que sua tarefa não seria concluída senão em nova existência, que se daria a breve espaço de sua próxima desencarnação; por essa razão ele não quer deixar passar a oportunidade de dar ao Espiritismo tudo quanto possa em força e vitalidade.

No ano de 1867, empreende curta viagem a Bordéus, Tours, e Orleans; depois, põe outra vez mãos à obra, para dar publicação, em janeiro de 1868, à Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Esta obra é das mais importantes, porque, do ponto de vista da ciência, constituí a síntese dos quatro primeiros volumes já publicados.

Allan Kardec entrega-se, em seguida, a um projeto de organização do Espiritismo, através do qual pretende imprimir mais vigor, mais ação à filosofia da qual se fez apóstolo, tentando desenvolver-lhe o lado prático e fazer que produza frutos. O constante objeto de suas preocupações é saber quem será seu substituto na obra, porque pressente estar próximo o seu trespasse; e a constituição que elabora tem justamente por finalidade prever as necessidades futuras da Doutrina Espírita.

Desde os primeiros anos do Espiritismo, Allan Kardec adquirira, com a venda de suas obras pedagógicas, um terreno de 2.666 metros quadrados, na avenida Ségur, atrás dos Inválidos. Como essa aquisição esgotou seus recursos, contraiu com o Crédit Foncier um empréstimo de 50.000 francos para mandar construir no terreno seis pequenas casas, com jardins; alimentava a fagueira esperança de recolher-se a uma delas, na Vila Ségur, e torná-la-ia, após a sua morte, em asilo a que se recolhessem, na velhice, os defensores indigentes do Espiritismo.

Em 1868, a Sociedade Espírita era reestruturada em novas bases o tornada sociedade anônima, com o capital de 40.000 francos, divididos em quarenta ações de mil francos, com o fim de explorar a livraria, a Revista Espírita e as obras de Allan Kardec. A nova sociedade devia instalar-se, no dia 1.º de abril, à rua de Lille, 7.

Allan Kardec, com o contrato de arrendamento na passagem de Santana, quase a findar-se, cogitava retirar-se para a Vila Ségur, para trabalhar mais afincadamente nas obras que lhe restavam fazer e das quais os planos e documentos já tinha reunidos. Estava, assim, em andamento todos os arranjos de transferência de domicílio, exigida pela extensão de seus múltiplos trabalhos, quando, no dia 31 de março, a doença do coração que o minava surdamente, pôs fim à sua robusta constituição e, como um raio, o arrebatou ao carinho dos seus discípulos. Essa perda foi enorme para o Espiritismo, que via partir o seu fundador e mais poderoso propagandista, e submergiu em profunda consternação todos aqueles que o haviam conhecido e amado.

Hippolyte-Léon-Denizard-Rivail --- Allan Kardec --- faleceu em Paris, à rua Santana, 25 (Galeria Santana, 59), 2º circunscrição e mairie de la Banque, no dia 31 de março de 1869, com 65 anos de idade, sucumbindo pela ruptura de um aneurisma.

Unânimes sentimentos receberam essa dolorosa notícia, e impressionante concorrência acompanhou ao Père Lachaise, sua última morada, os despojos mortais daquele que fora Allan Kardec, daquele que, através dos tempos, refulgirá como meteoro esplendente na aurora do Espiritismo.

Quatro orações proferiram-se à borda do túmulo do Mestre: a primeira pelo Sr. Levent, em nome de Sociedade Espírita de Paris; a segunda, feita pelo Sr. Camilo Flammarion, que não apenas fez um esboço do caráter de Allan Kardec, e do papel que seus trabalhos ocupam no movimento contemporâneo, como também, e principalmente, um exame da situação das ciências físicas, sob o ponto de vista do mundo invisível, das forças naturais ignoradas, da existência da alma e de sua indestrutibilidade. Em seguida, usou da palavra o Sr. Alexandre Delanne, em nome dos espíritas dos centros afastados; e, depois, o Sr. E. Müller, em nome da família e dos seus amigos, dirigiu ao morto querido os derradeiros adeuses.

A senhora Allan Kardec contava 74 anos quando seu esposo morreu. Sobreviveu-lhe até 1883, quando, a 21 de janeiro, faleceu, com a idade de 89 anos, sem deixar herdeiros diretos.

Estaria em erro quem acreditasse que, em razão de seus trabalhos, Allan Kardec devia ser, sempre, uma personagem fria e austera. Não era, contudo, assim. Esse grave filósofo, após discutir os pontos mais árduos da psicologia e da metafísica transcendental mostrava-se expansivo, esforçando-se, por distrair os convidados que ele, com freqüência, recebia na Vila Ségur; mantendo-se sempre digno e sóbrio em suas expressões, sabia adubá-las com o nosso velho sal gaulês, em rasgos de causticante e afetuosa bonomia. Gostava de rir, com esse belo riso franco, largo e comunicativo, e tinha talento todo seu para fazer que os outros partilhassem de seu bom humor.

Todos os jornais da época trataram da morte de Allan Kardec e buscaram medir-lhe as conseqüências. Temos aqui, como simples lembrança, o que a tal respeito escrevia o Sr. Pagés de Noyes, no Journal de Paris, de 3 de abril de 1869:

Um ponto a respeito do qual não chamei a vossa atenção, porém ao qual sou obrigado a assinalar, é a caridade verdadeiramente cristã de Allan Kardec; pode-se dizer dele que a mão esquerda ignorou sempre o bem que fazia a direita, e que esta, ainda, menos conheceu os botes que sobre a outra atiravam aqueles para os quais o reconhecimento é fardo excessivamente pesado, Cartas anônimas, insultos, traições, difamações sistemáticas, nada se poupou a esse intimorato lutador, a essa alma excelsa e varonil que adentrou integralmente a imortalidade.

Os restos mortais de Allan Kardec repousam no Père Lachaise, em Paris, debaixo de modesta lápide erigida pela piedade dos seus discípulos; nesse local é que se reúnem todos os anos, desde 1869, os adeptos que guardaram fidelidade à memória do Mestre e trazem preciosamente no coração o culto da saudade.

E visto como análogo sentido hoje nos reúne, repitamos bem alto, minhas senhoras, meus senhores:

Honra!

Honra e glória a Allan Kardec!

HENRI SAUSSE