XVII - Fundamentos de uma nova tradição

Este não é um capitulo de um livro futurológico. Este é um manifesto, um apelo, uma prédica - uma triste, prédica, ao estilo de Luigi Eínaudi que classificava como inúteis os seus últimos escritos, antes mesmo de haver registrado sua inevitável ineficácia sobre o público. E é bem de se esperar que seja nulo o efeito de uma exortação que se funde em uma nova tradição de competência, indo contra o aborrecimento da antiga tradição e sempre mais vigorosa, que inspira a maioria dos homens a buscar o caminho da resistência mínima, a aceitar compromissos, a substituir os procedimentos demorados e necessários pela improvisação, a não criticar os erros cometidos pelas pessoas famosas e a não combater a autoridade.

Esta tradição é considerada na Itália como típica do nosso país, mas não se faz menos presente e viva nos demais países: do mesmo modo, os membros de todas as profissões julgam que a qualidade de incompetentes seja máxima em seu próprio grupo de atividade, o que depende, claramente, da disponibilidade de maiores informações sobre as imperfeições do grupo ao qual se pertence.

A propósito da dificuldade de criar novas tradições, pode-se citar o caso daquele norte-americano que indagava a um don de Oxford o que deveria fazer para fundar nos Estados Unidos uma universidade a nível oxfordiano e recebeu a seguinte resposta: "O que se requer são recursos, um corpo docente de alto nível, uma boa constituição e cerca de oitocentos anos."

Mas é duvidoso que, mesmo com alguns séculos à disposição, se venha a conseguir inverter os hábitos atualmente correntes e a bloquear aquilo que, parafraseando J. K. Gaibraith, poderemos chamar de ignorância convencional. Todavia, esta é uma das poucas esperanças que se poderiam tomar por base para evitar a degradação dos grandes sistemas, e vale, pois, a pena explicitar a relação das medidas que permitam restabelecer esse meritório objetivo. São elas:

1 - Os casos de incompetência flagrante devem ser denunciados pelos que tomem conhecimento dos mesmos, com julgamentos que comprometam aos que os emitiram e que são muito mais incompletos do que o estritamente necessário. As reformas (ou as contra-reformas) somente podem ser bem sucedidas se visam mais intensamente ao que querem alcançar, somente se são violentas, somente se inspiram terror aos reformistas.

2 - Deve ser proclamada uma trégua nas maneiras brandas e tolerantes com as quais cientistas e profissionais avaliam, apreciam e apóiam os trabalhos de seus próprios colegas. Deve ser superada a objeção de que este comportamento - ora pouco congenial nos ambientes acadêmicos e profissionais, espécies congregadas nos famigerados álbuns profissionais - conduziria a polêmicas estéreis. Melhor é que algumas polêmicas sejam estéreis, mas que existam polêmicas. os cães devem comer alimentos para cães. A situação que daí se derivaria seria, por certo, antipática e desagradável, mas fora disso não há salvação.

3 - Deve ser instaurada uma religião (por mais odiosa que essa palavra possa ser) com um elevado padrão de julgamento e inflexivelmente ministrada nas escolas, nas universidades, na camada dos dirigentes. Os padrões elevados devem ser preferidos por si próprios e, não por suas boas conseqüências sociais; de outra maneira, sempre se encontrará nos fins uma justificativa para qualquer alteração e diminuição dos padrões para pressupostos casos especiais. O reconhecimento de erros de julgamento, cometidos por excessivo otimismo, deverá, pois, ser considerado como um mérito e deverá, igualmente, levar à inversão do julgamento e à degradação daqueles que foram superestimados.

4 - O objetivo que indico é, claramente, o de produzir consciências profissionais de mais alto nível e exigente (ou um fortalecimento do superego, como se diria na terminologia da psicologia dinâmica). Como o demonstrou, muito plausivelmente, H. J. Eysenck, a consciência que define o mal e nos impede de praticá-lo não deriva de um processo de aprendizagem, mas de um processo de condicionamento. Parece, conseqüentemente, necessário começar a condicionar os homens, desde a mais tenra idade, a padrões de consciência mais estreitos, tanto nas escolas primárias quanto nas secundárias.

Parece-me indiscutível a necessidade desse procedimento: se, nos primeiros anos de vida, a educação é dispensada de modo casual e não preordenado, os resultados dessa educação serão, igualmente, casuais e, em sua maior parte, deteriorados.

É necessário aumentar, mais genericamente, o número e o valor das instituições educacionais, escolares e universitárias, porque não só o nível de civilização, como também o sucesso industrial e econômico e, a longo prazo, a sobrevivência das nações, estão intimamente ligados à qualidade e à quantidade da instrução que consigam inculcar. Os Estados Unidos, com relação ao primeiro e ao segundo desses critérios, estão na vanguarda. Existem nos Estados Unidos da América mais de 1.200 universidades que concedem diplomas após cursos de duração mínima de quatro anos: há, no país, uma universidade para cada 170 mil habitantes. O mais importante, porém, é a elevadíssima porcentagem dos que freqüentam as universidades norte-americanas: cerca de 43% dos jovens entre 20 e 24 anos cursam a universidade na América, ao passo que o percentual correspondente, para a mesma faixa de idade, é de apenas 24% na União Soviética, 13,5% no Japão, 16% na França, 7,5% na Alemanha e 6,9 % na Itália.

É verdade que as universidades americanas têm sido agitadas, nos últimos anos, por severas criticas, mesmo por parte dos que estão dentro delas: estudantes e professores. É, igualmente, verdade, que se difundiu na Europa hábito autoconsolador de se destacar o baixíssimo nível de algumas delas. A esse respeito, não convém, porém, esquecer, que se podem aplicar às universidades americanas as considerações válidas nos casos dos grandes números e, em particular, as relativas à distribuição estatística, o que não é possível com referência aos outros países. Isto significa que, se é realmente verídico que existem numerosas universidades americanas muito decadentes, existem, em número quase idêntico, excelentes e extraordinárias - enquanto que, entre nós há uma multidão de nível intermediário e discreto.

A importância das universidades americanas não é expressa apenas em cifras, em estatísticas. O fato de que são as melhores do mundo pode ser demonstrado enumerando-se, simplesmente, vinte entre as mais famosas: Harvard, Yale, Massachusetts Institute of Technology, California Institute of Technology, Carnegie Institute of Technology, Illinois, Columbia, Michigan, California ern Berkeley, California, de Los Angeles, Stanford, Cornell, Princeton, Chicago, Texas de Austin, Duke, Ohio State, Northwestern, New York, John Hopkins.

Não obstante os números, sintomas que já citamos e discutimos, afirmo que o próximo período medieval começará, de fato, nos Estados Unidos, e sou forçado, por isso mesmo, a concluir que o sistema educacional mais adiantado, ambicioso e intensamente utilizado no mundo não é suficiente para lançar uma advertência a essa fatalidade regressiva e fundar a nova tradição que indiquei como necessária. Os melhoramentos no campo da educação - capazes de elevar, no mais alto grau, os serviços humanos e profissionais das populações dos países desenvolvidos e de inverter a tendência atual dos grandes sistemas em direção à degradação - deveriam, pois, ser o fruto de um esforço tão intenso que nem pode ser concebível. Esse esforço educacional deveria superar, em muitas ordens de grandeza, os planos mais ambiciosos atualmente concebidos. Mas não temos qualquer indicação de que algo semelhante esteja por acontecer; é por causa disso que, a situação parece, irreversivelmente desesperada.

As organizações internacionais e as comissões dos chamados peritos não vêem, sequer, o verdadeiro problema, que está na crise dos recursos humanos nos países desenvolvidos e em via de retrocesso, e concentram seus esforços sobre falsos problemas dos níveis deficientes de instrução nos países subdesenvolvidos ou em processo de desenvolvimento, A impossibilidade de a maioria atrasada da população mundial acompanhar a minoria desenvolvida e o ulterior aumento da diferença, tanto tecnológica quanto educacional e de alimentação, são, contrariamente, aspectos secundários da atual crise que se está agravando continuamente, o drama se coloca em termos contrários àqueles comumente aceitos: a disparidade diminui e as nações mais desenvolvidas, nos dias de hoje, poderão, cada vez menos, cumprir as funções de líder e poderão fornecer ajuda econômica, produtos industrializados e know-how, em medida decrescente.

Os projetos sérios, e relativamente modestos, de reformas e inovações educacionais - que deveriam ser exeqüíveis - já encontram tantas dificuldades que parece ser uma realização árdua e improvável. Como havíamos visto, em outra parte, todo projeto que poderia, realmente, criar uma nova tradição e opor-se à regressão contemporânea deveria ser, por definição, um projeto maximalístico e, em razão dessa sua mesma característica, seria impossível torná-lo aceitável e colocá-lo em prática. Por outro lado, reconhecer, brutamente, a insolubilidade do dilema, não responde à simples pergunta: que fazer? De fato, por mais que seja deteriorada a situação, não podemos simplesmente abandonar toda a tentativa de prever o futuro e de, influenciá-lo de modo a que se juntem soluções mais razoáveis. Nossas tentativas, pelo contrário, têm, talvez, tanto maior esperança de sucesso quanto mais é realisticamente pessimista o ponto de partida.

Mas, procuraremos inutilmente ouvir entre os administradores melhor orientados ou entre os tecnocratas, que têm os maiores recursos à sua disposição, e aos quais são propostos problemas semelhantes aos que estamos analisando, uma voz suficientemente pessimista, e autorizada, que faça sugestões merecedoras de atenção ou capazes de despertar esperanças plausíveis. Os administradores e os tecnocratas estão, talvez, viciados pelos próprios sucessos setoriais e habituados a um otimismo inexplicável, que os torna superficiais.

O esforço mundial de cooperação, por exemplo, indicado como essencial por Aurelio Peccei, requereria não apenas o acordo dos governos, mas, também, suas iniciativas determinantes. E quem haja experimentado a lentidão burocrática dos poderes públicos e haja examinado os insucessos dos planejamentos governamentais (planos qüinqüenais na Rússia, saneamento das áreas menos favorecidas na Itália, planejamento das new cities e projetos de integração nos Estados Unidos, a barreira dos dez milhões em Cuba) tem razão de duvidar seriamente da viabilidade de algum empreendimento com implicações, em grande escala, não de um único, mas de muitos governos. receei destaca oportunamente o caráter sistêmico dos problemas mais críticos que atualmente a sociedade deve enfrentar e escreve que "a humanidade e seu ambiente constituem um macrossistema integrado, ou seja, o sistema mundial". Havíamos visto, porém, que muitos sistemas parciais, e mais modestos, se desenvolveram de forma a não mais serem governáveis. Devemos concluir, pois, que faltam não somente os meios econômicos e a vontade, mas, também, os instrumentos e os esquemas mentais capazes de gerir o sistema mundial.

Alvin M. Weinberg, diretor dos laboratórios nucleares de Oak Ridge, nos Estados Unidos, denominou de "primeiro dilema malthusiano" o crescimento populacional mais rápido do que o dos meios de subsistência e indicou como o "segundo dilema malthusiano" a proliferação da complexidade que acompanha a expansão demografica nos países tecnologicamente adiantados. Malthus havia sugerido a hipótese de que os meios de subsistência crescem somente em progressão aritmética, ao passo que a população, se não for controlada, aumenta em progressão geométrica. Escreve Weinsberg que, em primeira aproximação, o número dos contatos semânticos (meios de comunicação, transportes, transmissões de energia, conflitos) cresce ao quadrado do número dos homens. Tanto para o primeiro, quanto para o segundo dilema malthusiano, Weinberg aconselha soluções tecnológicas simples e pouco dispendiosas, para as quais criou a expressão "fix tecnológico". (Um fix é um auxílio, um antídoto, uma adaptação, uma solução rápida, pragmática, pré-fabricado.)

A doutrina de Weinberg, exposta em seu livro Reflections on Big Science, publicado em 1967, propõe desígnios mais amplos do que simples soluções de manuais e pode parecer convincente aos técnicos ou, genericamente, àqueles que tendem a confiar nas soluções puramente técnicas.

Afirma Weinberg que a superpopulação pode ser contida com a distribuição em grande quantidade do anel anticoncepcional intra-uterino de Gräffenberg; mas uma versão rudimentar deste simplíssimo fix era empregada pelas cortesãs ao fim do século XV, e não surtiu, até agora, resultados apreciáveis.

A disponibilidade de energia nuclear, a preço muito baixo, poderia, segundo Weinberg, permitir a dessalinização da água do mar e, portanto, a irrigação de vastíssimas terras incultas, que poderiam produzir alimentos em quantidades muito superiores a qualquer necessidade.

O fix tecnológico da guerra já foi encontrado; trata-se da bomba-H, o último explosivo que dissuade os governos a tentarem aventuras militares - mas que não serviu para evitar a guerra do Vietnã, na qual os Estados Unidos perderam mais aviões do que na Segunda Guerra Mundial.

Weinberg sustenta, finalmente, que a explosão das informações pode ser contida pelo fix de um emprego oportuno dos possantes computadores, que as acaloradas agitações dos negros, nas cidades norte-americanas, podem ser evitadas, acalmando-se os ânimos por meio de temperaturas mais baixas, obtidas com o emprego maciço dos aparelhos de ar condicionado. Esta última idéia, em particular, é ridiculamente ingênua. No entanto, o mais grave é que Weinberg não tenha sequer procurado propor fix tecnológicos para o congestionamento e instabilidade. A disponibilidade, a baixíssimo preço, de energia produzida pelas grandes centrais nucleares não resolve o problema da estabilidade das redes elétricas.

O congestionamento do trânsito poderia ser sensivelmente aliviado proibindo-se a fabricação de carros com mais de dois metros de comprimento, mas ninguém perde sequer tempo avaliando as vantagens obtidas com um procedimento tão impopular e controvertido.

Não parecem encaminhadas a melhor destino as tentativas de resolver os problemas sociais mediante a aplicação de técnicas empresariais e de análise de sistemas "próprias da era espacial".

Em 1965, o Governador democrata da Califórnia investiu centenas de milhares de dólares em contratos de estudos destinados às sociedades industriais, que haviam alcançado um grande sucesso no campo aeroespacial. A Lockheed projetou um sistema, cujo custo foi de 100 milhões de dólares, para a coleta e elaboração centralizada de todas as informações (econômicas, organizacionais, burocráticas, técnicas, legais e ambientais) geradas no Estado da Califórnia. A North American Rockwell Corporation estudou os sistemas de transporte do Estado e sugeriu que fossem desenvolvidos certos modelos matemáticos de simulação. A Aerojet-General Corporation ocupou-se da eliminação dos refugos e da prevenção dos delitos, vindo a definir uma programação trienal para o planejamento executivo dos sistemas necessários.

Todos esses estudos não conduziram a qualquer ação concreta e foram ignorados pelo sucessor republicano do Governador democrata que os havia encomendado.

Em 1969, após dois anos infrutíferos, fracassou o plano concebido pelas Litton Industries, por encargo do governo dos coronéis gregos, que deveria atrair investimentos estrangeiros no valor de 420 milhões de dólares e desenvolver economicamente as regiões mais atrasadas da Grécia.

As propostas e tentativas de Peccei, de Weinberg, das indústrias aeroespaciais não devem ser desprezadas: é necessário, antes, esperar que sejam rivalizadas e superadas, porque não há alternativa - a menos que não se decida seriamente planejar comunidades de monges, que, durante toda a duração supostamente limitada do próximo período medieval, conservem os elementos considerados essenciais da nossa atual civilização.