XI - A inutilidade da guerra como meio de destruição

O mundo, tal como é, agrada somente a uns poucos otimistas, suficientemente fantasiosos para imaginá-lo melhor. Por outro lado, muitos são os homens que querem mudá-lo e crêem que, presentemente, a atividade mais importante seja a de abalar o "sistema", em cuja existência reconhecem o mais grave mal e o principal obstáculo a qualquer melhoramento. Muitos são, também, os que fazem objeção ao mundo atual e gostariam, talvez, de destruir, também, a estrutura do poder e da economia, mas julgam que o perigo mais iminente seja a destruição de todo o planeta em conseqüência de uma nova guerra mundial e que o primeiro objetivo a se propor seja, portanto, o do desarmamento.

Antes de examinar as causas remotas da degradação dos grandes sistemas e de descrever o que sucederá após uma degradação total, é conveniente discutir as teses às quais, para ser breve, chamarei de tese da contestação e do desarmamento. Dediquei a esta discussão este capítulo e o seguinte.

Se o temor de uma grande guerra mundial fosse, efetivamente, justificado, seria razoável a preocupação: antes de tudo, evitar a destruição dos grandes sistemas e, depois, evitar a deterioração.

Talvez não existam substitutos para a guerra. Há muitos decênios vêm sendo feitas propostas para abolir os conflitos armados e substitui-los por arbitragens internacionais.

Os organismos mais importantes surgidos dessas propostas foram a Liga das Nações - que não serviu para evitar a guerra da Abissínia, a guerra da Espanha e a Segunda Guerra Mundial - e a ONU, que não conseguiu impedir a guerra da Coréia, a guerra do Vietnã, o conflito árabe-israelense, a guerra entre Biafra e Nigéria, nem outras intervenções armadas mais breves e eficientes, como as elos russos na Hungria e na Tchecoslováquia.

Lewis Mumford, em seu livro The Culture of Cities, procurou esboçar uma teoria genérica que prevê o trágico final, por eventos bélicos, do excessivo desenvolvimento das cidades. Escreve Mumford que ao estágio dos depoli, isto é, de agregação primitiva, a cidade passou ao estágio de polis e, depois, aquele de cidade-mãe, metropoli. O irreversivel processo de desenvolvimento conduz a metrópole a transformar-se em megalopoli e a desorganização desta produz, fatalmente, a falsa condição da ditadura; assim, existe a tirannopoli. Para manterem o seu poder os tiranos incitara os cidadãos à guerra, ou os precipitam, forçosamente, em guerras imperialistas, as quais, juntamente, com a carestia e as epidemias, destroem as cidades e transformam-nas, ela necropoli, O último o definitivo estado.

E curioso que Mumford, ao republicar o livro após a Segunda Guerra Mundial, destacasse que a primeira edição, de 1936, era profética, como o demonstraram as destruições de Varsóvia, Londres, Stalíngrado, Nuremberg, Berlim, Frankfurt, Leningrado e Rotterdam, alem de, naturalmente, Hiroshima e Nagasaki. Hoje, 25 anos depois, todas essas cidades foram reconstruídas e são sede de fenômenos de congestionamento, demonstrando a inutilidade da guerra corno freio do crescimento dos sistemas.

Pode-se chegar a conclusões similares, examinando o gráfico da população mundial de 1850 a 1950. De 1850 a 1900, a população do inundo passou de 1.150 milhões a 1.650 (aumento de 43%) e no segundo cinqüentenário o aumento foi de 44%, de 1.650 milhões para 2.350, não obstante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, cujos efeitos são visíveis apenas no gráfico.

É instrutivo o exame duma tabela na qual estão discriminadas as populações em 1935 e 1966 e as perdas de homens devidas à guerra, em 10 países envolvidos no conflito:

  População
1935
Perdas
1939-45 em milhões
População
1966
Iugoslávia 14.0 1.70 20.0
Polônia 32.0 5.60 32.0
França 41.0 0.75 50.0
Itália 41.0 0.35 52.0
Grã-Bretanha 45.0 0.57 55.0
Alemanha 66.0 9.50 77.0
Japão 84.0 6.50 100.0
U.S.A 137.0 1.04 196.0
U.R.S.S. 162.0 13.50 236.0
Tchecoslováquia 14.5 0.50 14.2
Total 636.5 40.31 832.2

Malgrado a morte, por causa da guerra, de 6,4% da população dos países acima considerados, nos anos compreendidos entre 1939 e 1945, no período 1935-1966 a população total dos mesmos cresceu em 31%, ou seja, a expansão demográfica não diminuiu em proporção apreciável, nem mesmo em virtude da maior guerra que jamais se travou. Mas há, também, outra consideração ainda mais importante: Patrick M. S. Blackett, era seu livro Military and Political Consequences of Atomic Energy, publicado em 1948, demonstrou como os bombardeios de áreas urbanas, durante, a Segunda Guerra Mundial, tiveram conseqüências militares quase desprezíveis. Os bombardeios de Hamburgo, por exemplo, no verão de 1943, mataram mais de 60 mil pessoas, mas tiveram, também, o efeito de abaixar muitíssimo o padrão de vida da cidade e a demanda de pessoal afeito aos serviços urbanos; como conseqüência pôde ser suprida a carência de mão-de-obra de que antes se ressentiam as indústrias da região e, dentro de cinco meses, a indústria havia recuperado 80% do potencial de produção precedente. O abalo da produção da indústria alemã deveu-se, por outro lado, aos bombardeios de precisão efetuados nos sistemas de transportes.

A situação presente difere muito daquela da Segunda Guerra Mundial, em conseqüência da atual disponibilidade de bombas nucleares. Se supusermos, porém, que, em caso de uma terceira guerra mundial, venha a ser posta em prática a lição aprendida durante a segunda a respeito dos efeitos um tanto minguados dos bombardeios indiscriminados, seremos levados a julgar que, também, numa próxima guerra, as hecatombes, provavelmente, serão irrelevantes em relação ao fenômeno mais maciço da explosão demográfica.

Pode-se, certamente, indagar, nesta altura, se os arsenais nucleares preparados pelas grandes potências - e, já agora, também pelas não tão grandes - são quantitativamente suficientes para aniquilar essas mesmas nações e, talvez, aniquilar completamente toda a humanidade. Entretanto, a hipótese do holocausto nuclear - tornada possível pela capacidade de overkill (isto é, de exterminar todo adversário) já adquirida pelos menos pelos Estados Unidos e pela União Soviética - não muda, substancialmente, o quadro das previsões sobre o futuro de nossa civilização. E vejamos por quê.

A primeira eventualidade - isto é, a da destruição da totalidade, ou quase, do gênero humano - é, seguramente, a pior sob todos os pontos de vista, mas equivale ao desaparecimento da civilização, tal qual a conhecemos, e, como quer que seja, ao desaparecimento dos aspectos de congestionamento das concentrações urbanas que formam o objeto da minha indagação. Esta hipótese letal tem, por isto, conseqüências horríveis, e tão definitivas que não vale a pena determo-nos sobre ela. Nem por isto, porém, se deve deixar de procurar evitar a concretização da hipótese - ou seja, o uso indiscriminado e generalizado de bombas nucleares: todo movimento que propugna pelo desarmamento ou pela diminuição das armas nucleares deve ser apoiado; no entanto, as modalidades desse apoio, as esperanças ou as probabilidades de êxito no intento nada têm a ver com a exposição que vou aqui conduzindo.

A segunda eventualidade é a de que as armas nucleares não venham mais a ser utilizadas, pelo próprio temor de uma destruição total e de que continuem, portanto - como acontece atualmente -, as guerras do tipo convencional. Esta segunda hipótese não é improvável e há o fato precedente da abstenção do emprego de gás asfixiante, durante a Segunda Guerra Mundial. Como se viu, porém, o número de pessoas eliminadas por meio de guerras convencionais é irrelevante em relação às crescentes dimensões dos problemas de que nos ocupamos aqui, e para os quais também esta segunda eventualidade é destituída de interesse. Em caso de sua verificação, poder-se-ia, quando muito, remover o problema por alguns anos e, retardar a instabilidade em cuja direção os grandes sistemas continuariam, igualmente, a marchar.

A única hipótese relevante é a de uma guerra atômica, que reduza em um ou dois bilhões, em tempo curtíssimo, a população mundial. Não parece provável que isto possa ocorrer, porque seria necessário com esse objetivo, que o número de bombas nucleares explodidas e os locais das explosões fossem escolhidos e alvejados com muita precisão. O objetivo visado pela estratégia de cada uma das partes em conflito seria o de infligir, classicamente, o máximo dano a uma ou mais das outras nações implicadas e isso conduziria a amplos morticínios e a todas as outras coisas desse calibre.

A única circunstância que poderia limitar significativamente o número de mortos é que a ineficiência e a ingovernabilidade dos grandes sistemas não estão, por certo, limitadas aos sistemas urbanos, mas caracterizam, igualmente, os sistemas militares. Não está excluído, pois, que os militares procurem matar uma grande porcentagem do gênero humano, mas consigam, somente, eliminar algumas centenas de milhões de homens, ou, quando muito, um bilhão. O estado de coisas que se viria, assim, a criar seria, então, muito semelhante àquele já descrito da metade aproximada da população dos únicos países desenvolvidos, já que nestes estariam concentrados os objetivos da maior parte dos mísseis nucleares.

Para todos os fins sistêmicos, portanto, a hipótese de uma nova grande guerra mundial representa somente uma variante, não particularmente significativa, de outras hipóteses já levantadas e não configura, certamente, a ação de um fator limitativo capaz de evitar o alcance da instabilidade dos grandes sistemas e assegurar o não advento da próxima Idade Média, que se apresenta como a eventualidade ainda mais trágica, cuja probabilidade cresce independentemente do estado de paz ou de guerra do mundo.